«(…) Contra esse regime social, levantam-se de todos os lados os
protestos e as flagelações; vamos ver dois exemplos. Ouçamos, em primeiro
lugar, o que a este respeito diz Harold Laski, professor da Universidade de
Londres, no seu livro Gramática da Política: podem resumir-se brevemente os
resultados deste sistema. A produção efectua-se com desperdícios e sem plano
conveniente. As comodidades, os serviços necessários à vida da comunidade, não
são repartidos de modo a satisfazer as necessidades ou a produzir o máximo de
utilidade social. Construímos cinemas sumptuosos e temos falta de casas de habitação.
Gastamos em navios de guerra o dinheiro necessário para as escolas. Os ricos
podem gastar num só jantar o salário semanal de um operário, enquanto o
operário não pode enviar à escola os filhos insuficientemente alimentados. Uma
rapariga rica gastará no seu primeiro vestido de baile mais que o salário anual
dos trabalhadores que o fizeram. Em suma, produzimos comodidades inúteis e
distribuímo-las sem atender às necessidades sociais. Mantemos num parasitismo
ocioso uma vasta classe cujos gostos exigem que capital e trabalho concordem em
satisfazer necessidades sem nenhuma relação com os interesses humanos. E esta
classe não se põe à margem da comunidade. Como tem o poder de tornar as suas
exigências eficazes, estimula a imitação servil daqueles que procuram
misturar-se a ela. A riqueza transforma-se em padrão de medida do mérito; e a
recompensa da riqueza é a capacidade de fixar os níveis daqueles que procuram
adquiri-la. Esses níveis são fixados, não para satisfação de um fim moral, mas
do desejo de ser rico. Os homens podem começar a adquirir bens para assegurar a
sua existência, mas continuam a adquirir para alcançar a distinção que lhes
confere a propriedade. Ela satisfaz a sua vaidade e o seu amor do poder; permite-lhes
harmonizar a vontade da sociedade com a sua. Resulta daqui o que pode logicamente
esperar-se de uma tal ambiência. Produzem-se bens e serviços, não para os utilizar,
mas para tirar da sua produção elementos de posse. Produz-se para satisfazer,
não exigências legítimas, mas aquelas que são susceptíveis de render.
Aniquilam-se as fontes naturais de riqueza. Falsificam-se as comodidades.
Lançam-se negócios fraudulentos. Corrompem-se os legisladores. Falsificam-se as
fontes do saber. Realizam-se alianças artificiais para aumentar o preço das
comodidades. Exploram-se, com uma crueza por vezes terrível, as raças atrasadas
da humanidade...
Isto diz o professor Laski. Demos agora a palavra a Oliveira Salazar, o
qual, num discurso recentemente pronunciado em Lisboa, menos violento nos
termos, não formulou, no entanto, uma crítica menos condenatória. São suas
estas palavras, que transcrevo do Século de 17 de Março de 1933: nós
adulterámos o conceito de riqueza, desprendemo-la do seu fim próprio de sustentar
com dignidade a vida humana, fizemos dela uma categoria independente que nada tem
que ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade
dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem
regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de
trabalho e a pessoa do trabalhador... Pois muito bem. É para sustentar isto
que se cria e desenvolve, por toda a parte, um aparelho repressivo de cuja
actuação brutal todos os dias temos novas afirmações. À falência completa no
campo moral, vem juntar-se, como é do conhecimento de todos, a falência total
no campo económico. A proletarização de vastas camadas da população de todo o
mundo, a destruição dos meios de consumo, que a todo o momento se realiza, no meio
de povos a quem falta o indispensável, a existência de dezenas de milhões de desempregados,
são factos que falam bem eloquentemente por si e dispensam, por isso, comentários.
Nunca se viu um anquilosamento tão completo e tão rápido de uma classe
dirigente e nunca se viu também um tão grande apego ao poder. É que a crise
atinge os fundamentos da orgânica. Por isso, como dizia acima, a luta é mais
crua do que nunca. É também mais ampla do que nunca, precisamente porque os
alicerces estão atingidos. Há alguns séculos, os destinos de um agrupamento
social jogavam-se no próprio local em que o agrupamento vivia. Hoje, o futuro
de nós, portugueses, joga-se tanto em Portugal, como em Nova York ou nas
planícies do norte da China. O desenvolvimento do nacionalismo foi a obra do
século XIX, o do internacionalismo será a do século XX. Estas palavras,
proferidas há pouco na Sorbonne por Lord Lytton que, por encargo da Sociedade
das Nações, presidiu à comissão que foi à China investigar das causas do
conflito sino-japonês, merecem ser meditadas pelos adeptos do nacionalismo. Não
por aqueles para quem a pátria é um balcão de compra e venda, esses não
precisam de pensar, nem têm tempo para isso; mas pelos que, nem estarem num
campo errado, merecem menos consideração e respeito, desde que nele militem com
boa fé e desinteresse. Poucas questões há que tenham sido tão mal postas como
esta do nacionalismo e isso não admira, pois foram sempre as águas turvas o
ambiente propício para as manobras de certos pescadores... Se ser nacionalista
é, reconhecendo a existência de grupos étnicos com características próprias,
trabalhar pelo desenvolvimento desses grupos (nações), defender e propulsionar
a autonomia das suas instituições de vida e cultura, num largo espírito de
colaboração com os outros grupos étnicos, como pode deixar de ser-se abertamente,
francamente, nacionalistas?» In Bento
de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova,
1939.
Cortesia de Seara Nova/JDACT