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Os Filhos da Luz. Baviera, 1787
«(…)
Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um nó corrediço e
colocá-las no pescoço dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que estava
acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem cães levados pela coleira.
Levantando uma poeirada seca e amarela, saíram do povoado, enquanto cuspiam
ameaças e insultos sobre os revolucionários. Parem! Parem! Karl tentou ver quem
tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da qual ele se movia procurando
não se ver envolvido. Não conseguiu. Saia aí do meio, monsieur Blondel,
escutou o homem seco dizer. O povoado vai zecutar justiça. O povoado vai
zecutar justiça... Sim, a gramática era deplorável, mas as ideias não
poderiam ser mais claras. Eles, a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que tinham
fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina..., todos eles
representavam o povoado e não iam permitir que os homens de Paris lhes impusessem
a sua revolução, essa revolução que começava levando os produtos do campo e em
seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praça do lugar. À resistência
a esse plano revolucionário, libertador e cidadão, teriam dito em Paris, eles
chamavam zecutar justiça. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem
Robespierre estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam
sérias restrições em considerar povo aqueles que estavam dispostos a
enfrentá-los. Reiniciaram a caminhada. Karl então reparou num homem vestido de
maneira modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado à beira
da estrada. Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia
ser o tal Blondel. Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que não
se preocupasse, que tinha feito o possível, que até tinha chegado às raias do
heroísmo com o seu comportamento. Não fez isso, porque a vontade de saber onde
aquilo ia dar era mais poderosa naquele momento do que qualquer outra
consideração.
Ali... Ali! A multidão
acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo. Karl também
apertou o passo para evitar ver-se envolvido. Foi assim que chegou, suarento e
sufocado, até uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito em
circunstâncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto
de uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldeões deviam-se reunir ali em
dias de festa para beber e se divertir. Era o lugar ideal. Venham! Ali mesmo! Karl
viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de um
pequeno grupo de árvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade.
Pareciam estar ali desde a aurora dos tempos para cumprirem a sua missão solene
e especial, de servirem de patíbulos aos que se tinham atrevido a arrasar o que
aqueles que arrancavam o sustento da mãe Terra consideravam mais sagrado. Quase
como se fossem um só homem, meia dúzia de lavradores atiraram as cordas até à
copa das árvores. As sogas não chegaram a tocar o chão. Antes que terminassem
de cair, seis grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a
execução dezenas de vezes, apoderaram-se da ponta e começaram a puxar com todas
as suas forças. Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados
se elevavam no ar enquanto os seus rostos se congestionavam pela pressão que a
soga exercia nas suas gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente,
em vez dessa morte quase rápida que vem determinada pela fractura da nuca,
sofriam os estertores do estrangulamento. De facto, eles retorciam-se como
peixes tirados da água, enquanto os seus pés se separavam do chão.
Teve a sensação de que a
agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade, ela foi rápida. Apenas um
deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir à ideia de abandonar
um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de antemão e, além do
mais, a conclusão acelerou-se quando uma anciã se agarrou aos pés do réu e
puxou. Não conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham ultrapassado
a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela insensibilidade, aquela
ânsia, aquela falta de piedade? Talvez não fosse possível generalizar e cada
caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em Paris
entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas
execuções fossem apenas uma confirmação de que a injustiça, real ou imaginária,
estava sendo punida: aplaudiam uma espécie de equidade cósmica implantada sobre
rios de sangue. Para as mulheres daquele povoado, o motivo certamente era
diferente: deviam estar convencidas de que quem se atrevesse a destruir a religião,
o fruto do duro trabalho quotidiano, a família e a paz só poderia ser digno de
uma morte rápida. Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam
mortos. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Mesmo porque pelas pernas das
suas calças, como um testemunho sujo e humilhante, escorriam fios de urina e
excrementos.
Os Filhos da Luz. Baviera 1775
Steiner inclinou-se sobre os restos mortais do jovem. Custou-lhe muito reprimir
uma mistura de asco e mal-estar que tinha-se agarrado ao seu pescoço como se fosse
um cachecol de lã. Apesar dos anos de serviço que já tinha na polícia de Ingolstadt,
não conseguia controlar uma certa aversão por cadáveres. Descobrir ladrões, vigiar
suspeitos, estabelecer a cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e mesmo
redigir relatórios e instruir processos lhe pareciam tarefas toleráveis, aceitáveis,
até divertidas. No entanto, não conseguia acostumar-se ao exame de um cadáver.
Já se tinha perguntado mil vezes qual era o motivo de sua aversão e nunca
conseguia elucidá-lo completamente. Por certo, havia o aspecto físico da
decomposição da carne. Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a
lembrasse pontualmente na celebração da quarta-feira de cinzas, Steiner não
conseguia familiarizar-se com o facto de que um corpo que ontem respirava, que
até se mostrava viçoso e saudável, acabasse reduzido à condição de carniça
pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas não conseguia acostumar-se. No
entanto, o seu desconforto asfixiante e indesejável não se limitava ao aspecto da
decomposição de órgãos e músculos. Não, de forma alguma, quem lhe dera fosse
assim. Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegável evidência de
que a morte significa um final realmente terrível e que não existia a certeza
de que tudo não terminasse no meio de vermes e de putrefacção. Certamente,
havia os ensinamentos religiosos, e a afirmação do Credo sobre a ressurreição
da carne, e até os diferentes meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para
facilitar a sorte dos condenados ao purgatório. Tudo aquilo ele conhecia e, é
claro, acreditava». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António
Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.
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