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O banquete de Adrianópolis. Março de 1305.
Constantinopla e Adrianópolis
«(…) O dia 5 de Abril de 1305 foi mesmo o
último: para ele, Roger de Flor, e para tantos dos seus fiéis soldados! Os três
primeiros atacantes chegaram mais cedo à barca de Caronte, transportados pela
ferina força das mãos treinadas do grande comandante, mas ele já não pôde
evitar que sete espadas o trespassassem como se acabassem de abater um animal selvagem.
Estava cozinhado o veneno da vingança. Nos derradeiros estertores, Roger não
temia só pela vida. O espírito voou-lhe, novamente, para a sua tenda cor de
açafrão, onde guardava a relíquia que prometera levar ao seu lugar: o sarcófago
de Frederico II. Não cumprira essa missão, como era seu dever! Temia, agora, pela
sua salvação, pela de Maria e pela sua linhagem que, três meses antes, se iniciara
no seu ventre. Mas, sobretudo, pela humanidade! Maria, só tu ou a nossa
descendência poderão agora salvar-nos!..., foi a predicção com que dobrou o limiar
derradeiro da peregrina existência.
O Pacto de Melchior. ... Cerca
de 250 anos depois; Março de 1554
Havia muitos dias em que os sonos de Jaime
Pantoja eram intermitências entre momentos mágicos, feitos extraordinários e batalhas
sempre vencidas, e o breu agreste do quarto onde dormia, embora, de dia, fosse branco
de cal. Contudo, aquele rapaz, cujo inquisitivo olhar cinzento iluminava tudo onde
pousasse, perscrutava todos os segredos, fulminava os aborrecimentos, sabia que
aquele dia 2l de Março de 1554 que se preparava para alvorecer lhe traria, finalmente,
o momento por que suspirara durante tanto tempo. Esperou, já desperto, as últimas
horas, até que a criada lhe bateu à porta, acreditando num sono completo, como aquele
em que o jovem jazia matematicamente as noites inteiras, depois de rezar e de se
perder em pensamentos com Rosa, a rapariga que, nos últimos tempos, não lhe saía
da cabeça. Vestiu-se, num repente, espargiu água pelo rosto e alisou os longos cabelos
louros que, irreverentes, lhe bailavam sobre os ombros. Quando Córdova inteira ansiava,
de tanto preparo, pelas faustosas solenidades da Semana Santa, interromperam-se
os estudos de Jaime e dos amigos. Era a quarta-feira anterior à Páscoa, o dia marcado
para subirem à serra e ouvirem o velho eremita, de quem Simão, o português, tantas
vezes falara. Tudo fora combinado, em absoluto segredo, para aquela tarde,
entre Jaime Pantoja, Simão Gonçalves e Fernando del Pozo.
Hoje estás agitado, Jaimito! Dormiste bem,
ou passa-se algo que devas contar-me?! A tua cabeça parece estar bem longe desta
sala! Jaime aprendera a interpretar o que Rodrigo Cervantes dizia com as mãos e
com a boca para comunicar os seus intentos. Era um médico-cirurgião de
remediada reputação, surdo como uma porta desde o nascimento, por isso, um homem
triste, reservado. Mas a vida ensinara-lhe a perspicácia de entender, através da
subtileza de alguns sinais, tudo o que à sua volta acontecia. Instalara-se em
Córdova no ano anterior e, como precisava de um ajudante esperto e colaborante,
muito folgou quando o tio solteiro de Jaime, que dele cuidava desde que os pais
morreram, afogados num poço, lhe pediu que acolhesse o sobrinho nas horas vagas.
O rapaz passou, assim, a tomar os primeiros contactos com a arte, antes de, como
estava previsto para o ano seguinte, ingressar na Universidade de Salamanca. É
verdade, Rodrigo! Nestas últimas noites, não tenho dormido muito bem... Acordo a
pensar em aventuras, no meu futuro..., comunicou, com os sinais que nele
aprendera. E que gostarias de fazer no futuro, meu rapaz? ... lutar, conquistar
as terras longínquas, ser um grande soldado ao serviço de Sua Majestade, o Imperador
dom Carlos! Para as Américas, para o Norte de África, qualquer sítio onde possa
mostrar a minha valentia!... Jaime retorcia os lábios, imitando um bravo
guerreiro, com o que procurava demonstrar coragem e ousadia. Ah, Jaimito, todos
os jovens da tua idade sonham com essas aventuras. Mas, antes, tens de te preparar
para a vida e ouvir os bons conselhos. Aprende bem esta arte de curar as gentes,
pois nunca se saberá o quanto poderá ela ser-te útil, no futuro! O prático de medicina
afagava os cabelos louros do petiz, certo de que o orientava correctamente,
enquanto apontava, com cara de falso zangado, para os livros, cuja leitura lhe recomendara
durante uma parte dos dias de visita: a Gramática, de António Nebrija, a
Prática de Cirujía, de Juan Vigo, e o Tratado De Las Cuatro Enfermedades, de
Lobera Ávila.
Embora fosse oficio não muito apreciado, a
meio caminho entre o sangrador e o barbeiro, mas a um nível um pouco superior a
qualquer artesão, o mester de Rodrigo suscitava um fascínio especial no jovem cordovês.
Sempre que podia, e mesmo com a incompreensão dos amigos, que reclamavam a sua presença
nas brincadeiras de rua, corria para casa do velho cirurgião, depois de ir espreitar
o palácio do conde de Alcaudete, com a esperança de ver a rapariga com quem adormecia
todas as noites, em pensamento. Esta, sabendo do percurso diário de Jaime, espreitava-o
da janela e acenava-lhe, discretamente, à passagem, com um sorriso aberto.
Antes de deixarem de se ver, punham o dedo sobre a ponta do próprio nariz: o
código secreto que ambos inventaram para dizerem que davam um beijo um no outro.
Os transeuntes estranhavam os trejeitos do rapaz, de indicador arqueado sobre o
nariz, e virado para a janela do palácio.
Jaime Pantoja divertia-se com o especial gosto
pela descoberta do corpo humano e das maleitas que o poderiam afectar, em especial
quando acompanhava Rodrigo Cervantes nas colheitas das sangrias. Com o tempo, foi
aprendendo a importância e medida certa para cada caso, examinava com atenção o
mestre a reparar fracturas, a curar sequelas das rixas de estudantes, normalmente
resultantes da valentia dos fanfarrões, acidentes em oficinas de vários mesteres;
mas também procurava compreender o uso da palpitação do pulso, para entender tudo
o que se poderia saber sobre males e alterações de humores na raça humana. Vá lá,
segura bem nessa ampulheta, rapaz! Não percebo, mas hoje não estás mesmo nos teus
dias!... Enquanto duas filhas de Rodrigo e um filho tartamudo de sete anos
entravam na sala onde o médico elaborava as suas infusões medicinais, pedindo guloseimas
através dos gestos que o pai já conhecia, Jaime abria, uma vez mais, aquele sorriso
de quem está a escancarar uma janela interior com vista para locais tão desejados,
mas que só ele conhecia. Espreitou por ela e entreviu os outros dois amigos à sua
espera, na Plaza del Potro, perto de San Nicolás, de onde haviam combinado sair,
depois do almoço. Torceu o nariz com vontade de afastar aquela visão, fruto da sua
fabriquenta imaginação, pois a manhã primaveril ainda ia a meio. Jaimito, não
me ouves?! Andrea, a filha mais nova do mestre, agarrava-lhe o braço direito, segurando
um rebuçado, insistindo para que o aceitasse». In Alberto S. Santos, A Profecia
de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.
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