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de wikipedia e jdact
Factos
e Mitos. Destino
«A
mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz,
um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o
epíteto fêmea soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha da sua
animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: é um macho! O
termo fêmea é pejorativo não porque enraíza a mulher na Natureza, mas porque a
confina no seu sexo. E se esse sexo parece ao homem desprezível e inimigo,
mesmo nos bichos inocentes, é evidentemente por causa da inquieta hostilidade
que a mulher suscita no homem; entretanto, ele quer encontrar na biologia uma
justificação desse sentimento. A palavra fêmea sugere-lhe uma chusma de
imagens: um enorme óvulo redondo abocanha e castra o ágil espermatozoide;
monstruosa e empanturrada, a rainha das térmitas reina sobre os machos
escravizados; a fêmea do louva-a-deus e a aranha, fartas de amor, matam o
parceiro e o devoram; a cadela no cio erra pelas vielas, deixando atrás de si
um rastro de odores perversos; a macaca exibe-se impudentemente e se recusa com
faceirice hipócrita; as mais soberbas feras, a tigresa, a leoa, a pantera,
deitam-se servilmente para a imperial posse do macho. Inerte, impaciente,
matreira, estúpida, insensível, lúbrica, feroz, humilhada, o homem projecta na
mulher todas as fêmeas ao mesmo tempo. E o facto é que ela é uma fêmea. Mas se quisermos
deixar de pensar por lugares-comuns duas perguntas logo se impõem: que
representa a fêmea no reino animal? E que espécie singular de fêmea se realiza
na mulher?
Machos
e fêmeas são dois tipos de indivíduos que, no interior de uma espécie, se
diferenciam em vista da reprodução: só podemos defini-los correlativamente. Mas
é preciso observar que o próprio sentido do seccionamento das espécies em dois
sexos não é muito claro. Na Natureza ela não se acha universalmente realizada.
Para só falar dos animais, sabe-se que entre os unicelulares, infusórios,
amebas, bacilos etc., a multiplicação é fundamentalmente distinta da
sexualidade, com as células dividindo-se e subdividindo-se solitariamente.
Entre alguns metazoários, a reprodução opera-se por esquizogénese, isto é, fraccionamento
do indivíduo cuja origem é também assexuada; ou por blastogénese, isto é, fracionamento
do indivíduo produzido ele próprio por um fenómeno sexual; os fenómenos de
gemiparidade e de segmentação observados na hidra de água doce, nos
celenterados, nas esponjas, nos vermes, nos tunicários são exemplos conhecidos.
Nos fenómenos de partenogénese, o ovo virgem desenvolve-se em embrião sem
intervenção do macho; este não desempenha papel algum ou apenas um papel
secundário: os ovos de abelha não fecundados subdividem-se e produzem zangãos;
entre os pulgões não existem machos durante uma série de gerações, e os ovos
não fecundados dão fêmeas. Reproduziu-se artificialmente a partenogénese no
ouriço-do-mar, na estrela-do-mar, na rã. Entretanto, entre os protozoários, às
vezes duas células femininas fusionam, formando o que se chama um zigoto; a
fecundação é necessária para que os ovos da abelha gerem fêmeas e para que os
dos pulgões deem machos. Certos biólogos chegaram à conclusão de que, mesmo nas
espécies capazes de se perpetuarem de maneira unilateral, a renovação do germe
mediante uma mistura de cromossomos estranhos seria útil ao rejuvenescimento e ao
vigor da linhagem; compreenderíamos assim que, nas formas mais complexas da
vida, a sexualidade é uma função indispensável. Somente os organismos
elementares poderiam multiplicar-se sem sexos e ainda assim esgotando a sua
vitalidade. Mas essa hipótese é hoje das mais controvertidas; observações
provaram que a multiplicação assexuada pode verificar-se indefinidamente, sem
que se perceba nenhuma degenerescência; o facto é particularmente
impressionante entre os bacilos. As experiências de partenogénese tornaram-se
cada vez mais numerosas e ousadas, e, em muitas espécies, o macho se evidencia
radicalmente inútil. Mas, ainda que a utilidade de uma troca intercelular fosse
demonstrada, apresentar-se-ia como um simples facto injustificado. A biologia
constata a divisão dos sexos, mas embora imbuída de finalismo não consegue
deduzi-la da estrutura da célula, nem das leis da multiplicação celular, nem de
nenhum fenómeno elementar. A existência de gametas heterogéneos não basta para
definir dois sexos distintos; na realidade, acontece, muitas vezes, a
diferenciação das células geradoras não acarretar cisão da espécie em dois
tipos: ambas podem pertencer a um mesmo indivíduo. É o caso das espécies
hermafroditas, tão numerosas entre as plantas e que se encontram também em
muitos animais inferiores, os anelados e os moluscos, entre outros. A
reprodução efectua-se então ou por autofecundação ou por fecundação cruzada.
Neste ponto, igualmente, certos biólogos pretenderam legitimar a ordem
estabelecida. Consideram o gonocorismo, isto é, o sistema em que as diferentes gonadas
pertencem a indivíduos distintos, como um aperfeiçoamento do hermafroditismo
realizado por via evolutiva; mas outros, ao contrário, julgam o gonocorismo
primitivo: o hermafroditismo não passaria de uma degenerescência. Como quer que
seja, essas noções de superioridade de um sistema sobre o outro implicam, no
que concerne à evolução, teorias das mais contestáveis. Tudo o que se pode afirmar
com certeza é que esses dois modos de reprodução coexistem na Natureza, que
realizam, um e outro, a perpetuação das espécies e que, tal qual a
heterogeneidade dos gametas, a dos organismos portadores de gonadas se
apresenta como acidental. A separação dos indivíduos em machos e fêmeas surge,
pois, como um facto irredutível e contingente». In Simone Beauvoir, O Segundo
Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada,
ISBN 978-989-722-193-4.
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