Cortesia
de wikipedia e jdact
«Aos
meus quarenta anos, eu, Zarité Sedella, tive melhor sorte do que as outras
escravas. Vou viver muitos anos e a minha velhice será feliz porque a minha
estrela, a minha L'étoile, também brilha quando a noite está enevoada. Conheço
o gosto de estar com o homem escolhido pelo meu coração quando as suas mãos
grandes me despertam a pele. Tive quatro filhos e um neto, e os que estão vivos
são livres. A minha primeira recordação de felicidade, quando era uma ranhosa
ossuda e desgrenhada, é menear-me ao som dos tambores, e é essa também a minha
mais recente felicidade, porque ontem à noite estive na Praça do Congo a dançar
sem parar, sem pensamentos na cabeça, e hoje o meu corpo está quente e cansado.
A música é um vento que leva os anos, as recordações e o temor, esse animal
agachado que tenho dentro de mim. Com os tambores desaparece a Zarité de todos
os dias e volto a ser a criança que dançava quando ainda mal sabia caminhar.
Bato no chão com as plantas dos pés e a vida sobe-me pelas pernas, percorre-me
o esqueleto, apodera-se de mim, tira-me os desgostos e adoça-me a memória. O
mundo estremece. O ritmo nasce na ilha debaixo do mar, sacode a terra, atravessa-me
como um relâmpago e sobe ao céu levando os meus pesares, para que papa Bondye
os mastigue, os engula e me deixe limpa e contente. Os tambores vencem o medo.
Os tambores são a herança da minha mãe, a força da Guiné que corre no meu
sangue. Ninguém me leva a melhor então, torno-me envolvente como Erzuli, loa do
amor, e mais veloz do que o chicote. Chocalham as conchas nos meus tornozelos e
pulsos, perguntam as cabaças, respondem os djembés com a sua voz de
bosque e os timbales com a sua voz de metal, convidam os djun-djuns que
sabem falar e ronca o grande maman quando batem nele para chamar os
loas. Os tambores são sagrados, os loas falam através deles. Na casa onde
me criaram durante os meus primeiros anos, os tambores permaneciam calados na divisão
que partilhava com Honoré, o outro escravo, mas costumavam passear muitas
vezes. Madame Delphine, então a minha ama, não queria ouvir barulho de negros,
só os queixumes melancólicos do seu clavicórdio. Às segundas e terças dava
aulas a raparigas de cor, e no resto da semana ensinava nas mansões dos grands
blancs, onde as senhoritas dispunham dos seus próprios instrumentos porque
não podiam usar os mesmos que as mulatas tocavam. Aprendi a limpar as teclas
com sumo de limão, mas não podia fazer música porque madame proibia-nos de nos
aproximarmos do seu clavicórdio. Não nos fazia falta nenhuma. Honoré conseguia
tirar música de uma caçarola, qualquer coisa na sua mão tinha compasso,
melodia, ritmo e voz; tinha os sons no corpo, tinha-os trazido do Daomé. O meu
brinquedo era uma cabaça oca que fazíamos tocar; depois, ensinou-me a acariciar
devagarinho os seus tambores.
E
isto logo no princípio, quando ele ainda me pegava ao colo e me levava aos
bailes e aos serviços vodu, onde ele marcava o ritmo com o tambor
principal para que os outros o seguissem. É assim que me recordo. Honoré
parecia muito velho porque tinham-se-lhe arrefecido os ossos, embora, nessa altura,
não tivesse mais anos do que os que agora tenho. Bebia tafia (aguardente
de cana, de qualidade inferior ao rum) para suportar o sofrimento de se mexer,
mas, mais do que esse licor áspero, o seu melhor remédio era a música. Os seus
queixumes tornavam-se risos ao som dos tambores. Honoré só conseguia descascar
batatas para a comida da ama com as suas mãos deformadas, mas a tocar o tambor
era incansável e, quando se tratava de dançar, ninguém levantava os joelhos
mais alto, nem abanava a cabeça com mais força, nem bamboleava o rabo com mais
gosto. Quando eu ainda não sabia andar, fazia-me dançar sentada, e assim que
consegui segurar-me nas duas pernas, convidava-me a perder-me na música, como
num sonho. Dança, dança, Zarité, porque escravo que dança é livre..., enquanto
dança, dizia-me. Eu dancei sempre.
Saint-Domingue.
1770-1793
Toulouse
Valmorain chegou a Saint-Domingue em 1770, no mesmo ano em que o delfim de França
se casou com a arquiduquesa austríaca Maria Antonieta. Antes de viajar para a
colónia, quando ainda não suspeitava que o seu destino lhe ia pregar uma
partida e acabaria enfaixado entre canaviais nas Antilhas, tinha sido convidado
para ir a Versalhes a uma das festas em honra da nova delfina, uma rapariguinha
loura, de catorze anos, que bocejava sem pejo no meio do rígido protocolo da
corte francesa. Tudo isso foi remetido para o passado. Saint-Domingue era outro
mundo. O jovem Valmorain tinha uma ideia bastante vaga do lugar onde o seu pai
amassava, mal ou bem, o pão da família com a ambição de o converter numa
fortuna. Tinha lido algures que os habitantes originais da ilha, os aruaques,
lhe chamavam Haiti, antes de os conquistadores lhe trocarem o nome para La
Española e acabarem com os nativos. Em menos de cinquenta anos, não sobrou um
único aruaque vivo, nem como amostra: pereceram todos, vítimas da escravidão,
das doenças europeias e do suicídio. Eram uma raça de pele avermelhada, cabelo
forte e preto, de inalterável dignidade, tão tímidos que um só espanhol podia
vencer dez deles com a mão nua. Viviam em comunidades polígamas, cultivando a
terra com cuidado para não a esgotar: camote (espécie de batata-doce), milho,
abóbora, amendoim, pimentos, batata e mandioca. A terra, como o céu e a água,
não tinham dono, até os estrangeiros se apoderarem dela para cultivar plantas
nunca vistas com o trabalho forçado dos aruaques. Começou nesse tempo o hábito
de canzoar: matar pessoas indefesas açulando cães contra elas. Quando
acabaram com os indígenas, importaram escravos sequestrados em África e brancos
na Europa, condenados, órfãos, prostitutas e revoltosos». In Isabel Allende, A Ilha Debaixo
do Mar, 2009, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-001-948-6.