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O Pacto de Melchior. ... Cerca
de 250 anos depois; Março de 1554
«(…) Foi ele quem me disse que sabia fazer
pactos de sangue para a vida inteira, e para além dela... Ui, isso parece coisa
de bruxo... Ainda podem prender-nos e torturar-nos!, comentara, com receio,
Fernando del Pozo, pois dizia-se que, a partir dos catorze anos, a Inquisição (maldita) já torturava gente.
Sempre lhes fora vedado assistir aos autos de fé, mas todos sabiam que se garroteavam
e queimavam os hereges, os marranos, os renegados, bruxos e toda a sorte de gente
que punha em causa a verdadeira fé de Cristo. E Fernando del Pozo temia, mais
do que ninguém, a vergonha de poder ser associado a algo que ofendesse a Igreja
cordovesa. Muito embora seu pai, o director do coro da Catedral, tivesse já
morrido anos antes, estava aos cuidados do tio Martín Alonso, famoso clérigo pregador
e cónego da cidade.
Acho que não... Ainda não entramos nos quinze!...,
respondera Simão, para desanuviar, e todos se riram. Em passo de corrida, os três
rapazes acercaram-se rapidamente do sopé da serra. Ao longe, viam-se as ruínas da
cidade palatina que, em tempos idos, fora a sede do poder califal muçulmano na
Península Ibérica, a Medina Zahara. Enquanto vencia o declive, Jaime viajou,
novamente, para Rosa. Aquela rapariga despertara-1he sentimentos que a vida
ainda não lhe havia feito compreender totalmente, mas que lhe provocavam formigueiros
no corpo e compressões, principalmente no estômago. Recordou que abalaria, em breve,
para uma prolongada estada em Orão, no Norte de África. Receou, outra vez, o seu
jovem coração, os efeitos dessa separação.
Estamos quase a chegar à cabana do velho!,
quebrou-lhe o português as cogitações, trazendo-o de volta à missão que
prosseguiam e que tanto os animava.
O septuagenário homem, de rosto de casca de
carvalho e cabelo tão branco como um plumoso cisne, moldando uma redonda e
tostada coroa no tecto da cabeça, vivia nas imediações. Mas só Simão, por entre
caminhos indescortináveis a qualquer viajante, conseguia orientar a pequena comitiva,
sem erro algum. Decorara-os, interiormente, nas duas vezes que, com a tia, visitara
a decrépita cabana. Melchior encontrava-se sentado sobre as pernas, com as mãos
nos joelhos, fitando o local de onde surgiram os três rapazes. Vestia uma túnica
branca desbotada, cingida por uma corda à cintura. Apesar de o seu mundo de silêncio
lhe ter revelado que gente se aproximava, pareceu perturbar-se quando enxergou
três ofegantes adolescentes a subir a ladeira. O olhar cirúrgico, guardião do baú
da sabedoria, enchido, ao longo da vida, por inúmeras viagens, íntimas reflexões
sobre a condição humana e discretas observações dos comportamentos de quem foi passando
por si, rapidamente farejou o português. Lembrava-se dele, de o achar esperto e
curioso, e de o ter levado a visitar uma caverna escondida, onde guardava,
secretamente, alguns dos seus pertences, nomeadamente, livros raros.
Jaime deteve a marcha, fixado no estranho ser
que os mirava através de duas lâmpadas negras e oblíquas, despontando sob
farfalhudas sobrancelhas encanecidas. Tu és o português!, reagiu, arremessando
o longo e esguio indicador de unha comprida na direcção de Simão. As longas neves
que lhe escorriam da cabeça e a pose seráfica pintada pelo olhar, ao mesmo tempo
sereno e penetrante, conferiam ao ancião a personificação da sabedoria e da bondade,
juntas num corpo curtido pelo tempo e pelos misteriosos conhecimentos que adquiriu
em viagens e secretas leituras.
Sou sim, Melchior! E estes são os meus
amigos Jaime e Fernando, com quem quero fazer um pacto de sangue, retorquiu o moço,
acenando a cabeça e apontando os amigos, ainda impressionado pela força e magnetismo
que emanavam do enigmático decano. O homem fitou-os, longamente, com um ar grave
e sério. O prolongado silêncio tornou-se intimidatório, até que os jovens se entreolharam,
procurando encontrar uma solução para o impasse. O provecto anfitrião levantou-se
com agilidade, estudou os três, por uma última vez, e, quebrando o gelo, abriu
um largo sorriso, assumindo um tom cordial: entrem! São meus convidados!» In
Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN
978-972-004-103-6.
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