domingo, 5 de março de 2017

A Biblioteca Perdida do Alquimista. Marcello Simoni. «Mas se Fernando está em luta contra o emirado de Córdova, por que razão um califa maometano haveria de o ajudar? Ignazio encolheu os ombros»

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O conde de Nigredo
«(…) Muito bem, meu amigo, disse Ignazio, pondo-lhe a mão nas costas. Atrela o cavalo ao carro e sobe. Vamos pôr-nos a caminho. O francês obedeceu. Descobriste onde se situa o acampamento do rei? Acho que sim, respondeu o homem, acomodando-se ao lado de Uberto. Basta seguirmos aquelas tropas. Apontou a fila de soldados que se dirigiam para a pequena povoação. Temos de chegar lá o mais depressa possível. Depois do cair da noite, estas terras ficam pejadas de ladrões. Retomaram o caminho. O carro voou pelo declive, vacilando a cada buraco, e mergulhou por entre uma vegetação que, com a aproximação do rio, se tornava cada vez mais densa e rica em palmeiras. Embora tudo isto acontecesse nos primeiros dias de verão, uma ligeira neblina toldava as cores dos vinhedos longínquos. Os três companheiros seguiram o itinerário batido pelos soldados e atravessaram o rio por uma velha ponte de pedra apoiada em quinze arcadas, ainda a tempo de verem os soldados a desaparecer por trás das muralhas da povoação. Só que a cancela fechou-se antes de conseguirem entrar. Uberto parou os cavalos e olhou em redor. O vale estava envolto em silêncio. A povoação surgia sobre uma colina delimitada por um anel de muralhas. No cimo da elevação, sobressaía um castelo com uma torre, por entre os estandartes reais. Nesse momento, um destacamento de soldados saiu da mata e circundou o carro. Estavam todos vestidos da mesma maneira, com lorigas de metal, elmos munidos de nasal e túnicas vermelhas. O mais gordo e hirsuto do grupo veio apressado até ao carro, armado de uma lança. Parai, señores! Este é um presídio do rei de Castela. Ignazio, que previra tal situação, fez sinal aos companheiros para que se mantivessem calmos, depois ergueu a mão e desceu do carro. Chamo-me Ignazio Álvarez Toledo, sou mercador de relíquias e encontro-me aqui por ordem expressa de sua majestade, o rei Fernando III. Um segundo soldado deu um passo em frente. Não confio nestes biltres! Cuspiu para o chão e desembainhou a espada. Quanto a mim, não passam de espias do emir. E se assim for, terão o mesmo destino daqueles, acrescentou um terceiro, apontando para quatro cadáveres que pendiam do bastião. Nada intimidado, Ignazio dirigiu-se ao soldado hirsuto, que, apesar do aspecto, parecia mais razoável. Possuo uma missiva com o selo régio, pelo que posso demonstrar aquilo que afirmo. Apontou para o bornal. Podeis vê-la, se quiserdes. O soldado concordou, intimando os companheiros em silêncio.
O mercador de Toledo estendeu-lhe um rolo de pergaminho, mas, consciente de que ninguém sabia ler, acrescentou: verificai o selo, deveis reconhecê-lo facilmente. O soldado pegou no rolo, correu os olhos pelas linhas a tinta e ficou a observar a marca impressa na cera. Sim, é o selo régio. Restituiu o documento a Ignazio, fazendo uma ligeira vénia. Os senhores perdoem o rude acolhimento, mas as tropas maometanas estão acampadas a pouca distância daqui e de vez em quando tentam infiltrar os seus espias na nossa guarnição. Tranquilizai-vos, vou providenciar para que vos deixem entrar. Voltou-se para as muralhas e gesticulou para uma pequena torre de madeira situada à entrada. Daquela posição, uma sentinela respondeu agitando uma bandeirola. Prossegui até à entrada, continuou o soldado, ao mesmo tempo que perscrutava uma vez mais os viajantes. Quando estiverdes perto, a cancela será levantada e podereis passar. Bem-vindos a Andújar, a antiga cidade de Iliturgis. Ignazio voltou a subir para o carro e Uberto incitou os cavalos a prosseguir.
Deixaram para trás as muralhas exteriores e seguiram através daquele que pouco tempo antes fora um florescente centro agrícola e artesanal. À beira da estrada surgiam construções de todo o tipo, abandonadas e enegrecidas pelo fogo. Os únicos edifícios que continuavam a dar sinais de vida eram as tabernas, em frente das quais conversavam grupos de soldados embriagados. A praça do mercado albergava os acampamentos das tropas, entre as quais havia alguns soldados berberes aquartelados longe das milícias regulares. Uberto observou-os curioso. Vestiam um uniforme ligeiro, coberto por uma capa com capuz, o burnus. Por estranho que parecesse, aqueles homens pertenciam às unidades de camelos montados do Norte de África. Não vos admireis com a presença de guerreiros mouros, disse Ignazio para o filho. O califa do Magrebe aliou-se a Fernando III, por isso enviou-lhe reforços.
Mas se Fernando está em luta contra o emirado de Córdova, por que razão um califa maometano haveria de o ajudar? Ignazio encolheu os ombros. Esta guerra não é uma guerra de religiões, mas de interesses. Como qualquer outra, aliás, comentou Willalme. Quando já estavam próximos do castelo, veio ao seu encontro um cavaleiro com armadura e um escudo decorado com um brasão de cruz florida. Señores, não podeis prosseguir, disse num tom que não era descortês. A menos que tenhais alguma licença. Temos uma licença, sim senhor, assegurou Ignazio. Sua majestade espera-nos. Terei de me certificar disso, depois escoltar-vos-ei até à sua presença. O mercador de Toledo estendeu-lhe a carta com o selo régio. O cavaleiro pegou-lhe com a mão enluvada de ferro, leu-a atentamente e restituiu-lha. Pelo que me é dado ver, está tudo conforme as regras. Tirou o capuz de protecção, descobrindo um rosto jovem moreno. Sou Martin Ruiz Alarcón. Segui-me, indicar-vos-ei as estrebarias». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.

Cortesia de CAutor/JDACT