Cortesia
de wikipedia e jdact
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A história da comuna judaica viseense inicia-se, portanto, nos finais do século
XIII e, tal como sucede com a esmagadora maioria das localidades portuguesas, o
seu estudo depende exclusivamente das informações constantes nas fontes
cristãs, uma vez que desta comunidade não chegaram quaisquer testemunhos
escritos a respeito da sua constituição ou do seu funcionamento. A imagem que
hoje podemos construir dos judeus de Viseu é, assim, limitada ao resultado de
uma leitura realizada de fora para dentro, ou seja, a partir do exterior deste
grupo e circunscrita aos registos que a maioria cristã deixou nos seus centros
de produção documental. No caso particular de Viseu, a base para o estudo da
comuna hebraica encontra-se na chancelaria régia, mormente no que diz respeito
à centúria de Quatrocentos, e, sobretudo, no rico repositório informativo do
cartório do cabido da Sé viseense, de onde provém a esmagadora maioria das
fontes para a história da presença judaica na cidade, agora por nós elencada e
que compreende uma cronologia que se estende dos finais do século XIII até aos inícios
do século XVI (neste cartório capitular reunimos um total de 80 documentos que
testemunham, directa ou indirectamente, a presença judaica em Viseu, 80% dos
quais são referentes ao século XV e correspondem na sua maioria a contratos de
emprazamento ou de escambo de propriedades do cabido; a esta documentação
proveniente da Sé acresce a massa informativa reunida nas chancelarias régias e
que não ultrapassa a meia centena de documentos, datados sobretudo do reinado
de Afonso V). É especialmente através dos documentos produzidos ou recolhidos
pelo cabido da catedral que se torna possível perscrutar as características e
as linhas de inserção da minoria hebraica, numa leitura que se entrecruza,
inevitavelmente, com a vida económica desta instituição eclesiástica, a mais
importante de Viseu e de toda a região da Beira. A Sé, na condição de detentora
de grande parte da propriedade urbana e peri-urbana da cidade, funcionou como
um dos principais interlocutores no relacionamento entre judeus e cristãos, e
exerceu uma forte influência nos mecanismos de organização sócio-espacial
daquela minoria, o que desde logo se pode compreender se tivermos em conta o
facto do cabido ser o proprietário de muitas das casas e dos bens habitados e
emprazados por judeus.
Cientes
desta estreita ligação estabelecida entre o cabido da catedral e a comuna, examinemos
então com mais pormenor as fontes e analisemos o que elas nos têm a dizer. Situa-se
em pleno reinado dionisino e a poucos anos do final do século XIII, mais concretamente
em 1284, a primeira referência a um judeu habitante de Viseu, de nome Abraão e
antigo proprietário de casas no Soar, que em 1293 foi indiciado pela justiça do
rei, acusado de cobrar mais do dobro do montante de um empréstimo que concedera
a um cristão da cidade (a queixa partiu de Mem Lourenço e da sua mulher que
acusaram Abraão, judeu de Viseu, de lhes levar gram peça, ou seja, mais
que o dobro da dívida que a ele haviam contraído; o rei determinou que, caso se
provasse a acusação, o judeu fosse obrigado a devolver aos credores a quantia
que havia levado a mais; 1293, 4 de Junho, Lisboa; o problema da usura foi
motivo de intensa legislação desde o reinado de Afonso III, visando combater os
empréstimos concedidos por judeus a juro imoderado). Abraão residia com sua
mulher Donti Dona numas casas em Cimo de Vila, na entrada sul do
arrabalde de Viseu, junto das quais o casal possuía uma outra habitação com
sobrado, que optou por alienar a um cónego da Sé, em Março de 1305 (foi
acordado com o comprador, o cónego Martim Peres, a condição de poder ter
serventia da sua nova casa através das habitações dos vendedores judeus seus
vizinhos; estas casas compradas pelo cónego são, dois anos depois, por si
doadas a Clara Eanes, registando-se o facto do judeu Abraão e da sua mulher
delas ainda serem vizinhos). Como testemunha do contrato de compra e venda deste
imóvel aparece um outro judeu, chamado Bento, que, por certo, e juntamente com
a família de Abraão, terá convivido com Abricio, também membro da
comunidade judaica e morador, pelo ano de 1303, junto ao terreiro da ermida de
S. Domingos. Mostram-nos estas referências, apesar de esparsas, alguns dos
nomes dos primeiros hebreus de Viseu que, na transição do século XIII para o
XIV, se fixaram no arrabalde da cidade, mais concretamente junto a Cimo de Vila
e a S. Domingos, habitando um espaço urbano também ocupado pela população
cristã e situado numa zona privilegiada de acesso ao eixo viário que fazia a ligação
a sul, em direcção a Coimbra. Infelizmente, nada mais se conhece desta primeira
comunidade hebraica, tão pouco o documento régio que eventualmente terá sancionado
a sua formação (competia ao rei conceder, através de uma carta de privilégios,
autorização para a criação das comunas judaicas e regulamentar todos os seus
usos e costumes, foros e privilégios). Os registos documentais do século XIV
mostram-se parcos em informações sobre este grupo, revelando-nos apenas sinais
de aproximação à maioria religiosa, de que são exemplos o caso de um judeu
convertido ao cristianismo (trata-se de Martim Afonso, que foi judeu, 1319) e
alguns indícios de agitação entre os cristãos e esta minoria semita, ocorrida
durante o reinado de Afonso IV. Referimo-nos a queixas que os oficiais do
concelho fizeram chegar ao monarca reclamando da conduta do corregedor quando
estanciava em Viseu, por frequentemente tomar para si e para a aposentadoria
dos seus homens roupas e camas aos vizinhos cristãos, em vez de o fazer aos
vizinhos judeus, como, aliás, mandava o costume antigo da cidade (queixa atendida
pelo rei que ordenou o respeito pelo costume de tomar roupa aos judeus e não
aos cristãos da cidade, 1338, 21 de Maio, Coimbra); nesta mesma carta de Afonso
IV é-nos dado a saber que os arrabis da comuna de Viseu não têm jurisdição
sobre os feitos crimes praticados pelos judeus, a qual pertencia aos juízes do
concelho)». In Anísio Sousa Saraiva,
Metamorfoses da cidade medieval. A coexistência entre a comunidade judaica e a
catedral de Viseu, Revista Medievalista, nº 11, 2012, Universidade de Coimbra;
Centro de História da Sociedade e da Cultura; Centro de Estudos de História
Religiosa, IEM, ISSN 1646-740X.
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