Cortesia
de wikipedia
Do
Império Romano ao Ano Mil
«De César
e Augusto a Carlos Magno, e até à ascensão dos Comneno ao trono de
Constantinopla, este livro abrange oito ou mesmo dez séculos de vida privada.
Não deixa de haver lacunas, que são intencionais; um inventário completo não
teria atractivos para um leitor erudito. Conhecem-se muitos séculos através de
uma documentação tão pobre que não tem vida; o tecido desse milénio está
crivado de lacunas esparsas. Nesse manto excessivamente grande preferimos
recortar fragmentos mais ou menos coerentes, cujas imagens ainda se animam. Primeiro
fragmento: o Império Romano na época do paganismo, relatado com detalhes
suficientes para ressaltar o contraste da cristianização; devemos agradecer ao
grande historiador Peter Brown por se ter encarregado de colocar tal ácido no
reagente. Esse quadro de duas faces, paganismo e cristianismo, articula-se,
portanto, como um drama: o drama da passagem do homem cívico ao homem interior.
Segundo fragmento: o quadro material da vida privada; a casa, na
Antiguidade pagã e cristã, é estudada em detalhe, menos na materialidade do que
nas funções, na arte e na vida; parece-nos que se trata de um estudo muito novo.
De início quisemos equiparar a abordagem da arquitetura privada ao estudo da
arquitetura pública urbana que, na Histoire de la France urbaine, ocupa
amplo espaço no texto. A nossa segunda razão é o grande interesse do público actual
pela arqueologia; no Verão vemos os turistas aglomerarem-se em grande número
nos sítios de pesquisa, com o guia nas mãos. O guia, porém, não é tudo: não
pode ensinar a ver, a interpretar pobres restos, a reconstruir mentalmente as
paredes, os andares e o telhado de uma casa reduzida aos alicerces, a imaginar
os habitantes, as suas ocupações, a sua circulação dentro da casa, a sua
promiscuidade ou o seu distanciamento.
Terceiro
fragmento:
a Alta Idade Média ocidental e o Oriente bizantino. No século V de nossa era, o
Império Romano perde as suas províncias ocidentais, onde os bárbaros delimitam
reinos. Reduzido à metade oriental, o Império Romano continua; a civilização
bizantina não é outra coisa senão a continuação da Antiguidade romana,
transformada pouco a pouco apenas pela força do tempo que passa. Dois quadros
contrastados fazem ver, no espírito da nova história, a vida do Ocidente
merovíngio e carolíngio e do Império Bizantino na época da dinastia macedónia.
Por que começar com os romanos? Por que não com os gregos? Porquê os romanos?
Porque a sua civilização seria o fundamento do Ocidente moderno? Não sei. Não
se tem a certeza de que seja tal fundamento (importam muito mais o
cristianismo, a tecnologia e os direitos do homem); não percebemos bem o
sentido exacto que devemos dar ao termo fundamento para evitar que uma
discussão sobre o assunto conduza a meras divagações de conotações políticas ou
didácticas. Enfim, podemos achar que um historiador não tem necessariamente
como função reconfortar arrivistas nas suas ilusões genealógicas. A história,
essa viagem ao outro, deve servir para nos fazer sair de nós, tão legitimamente
quanto nos confortar em nossos limites. Os romanos são prodigiosamente
diferentes de nós e, em matéria de exotismo, nada têm a invejar aos ameríndios
e aos japoneses. Essa foi uma primeira razão para começar a presente história
por eles: para mostrar um contraste, e não o futuro Ocidente delineando-se. A família
romana, para falar só dela, parece-se tão pouco com a sua lenda ou com o que
chamamos de família…
Mas,
então, por que não os gregos? Porque os gregos estão em Roma, são o essencial
de Roma; o Império Romano é a civilização helenística nas mãos brutais (também
aqui, nada de sermões humanistas) de um aparelho de Estado de origem italiana.
Em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião
provieram quase inteiramente dos gregos ao longo de meio milénio de
aculturação; desde a sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos
helenizada que outras cidades da Etrúria». In Paul Veyne (organização, História da Vida
Privada, do Império Romano ao ano mil, tradução de Hildegard Feist, colecção de
Philippe Ariès e Georges Duby, Companhia de Bolso, ePub, 1985, Companhia das
Letras, 2009, ISBN 978-853-591-378-1.
Cortesia
de CBolso/CLetras/JDACT