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«Tróia,
com muralhas ainda novas
tinha
sido destruída, aquela nobre e real cidade
e muitos
homens dignos de renome
tinham
perdido a vida, que nenhum homem pode contestar
e
tudo por causa de Helena, esposa de Menelau,
quando
uma coisa está feita, já não pode ser de outra forma».
In Troy Book, cerca de 1412-1420
«Eu voava
de regresso a Tróia. Não, era mais como se pairasse, pois era um voo estável, sem
sobressaltos. Eu não tinha asas, embora tivesse os braços estendidos. Mas estes
serviam para me conduzir e não para me deslocar. Sentia o vento deslizar-me por
entre os dedos. Estava maravilhada com o milagre de poder regressar a Tróia, e de
forma tão fácil. Conseguia ver o azul brilhante do mar, as suas centelhas e ondas
cheias de espuma branca, e as ilhas que se erguiam como dorsos inférteis de animais
desprovidos de pêlo. Estes eram castanhos e os seus ossos notavam-se nas colinas
que constituíam as suas colunas. Onde estavam as que Páris e eu tínhamos
visitado durante a nossa viagem para Tróia, os nossos pontos de passagem? De tão
grande altitude era impossível distingui-las. Uma desceu rapidamente ao meu
lado e o vento provocado pelo bater das suas asas perturbou o meu voo. Por um instante
senti-me cair, depois voltei a endireitar-me e continuei a flutuar serenamente.
O meu vestido esvoaçava, flutuando como fumo em meu redor. Muito abaixo conseguia
ver navios. Qual seria o seu destino? Quem transportariam? Era impossível saber,
mas também não importava. Era assim que os deuses nos viam, como insignificantes
diversões. Agora eu compreendia. Finalmente compreendia. A costa de Tróia
surgir no horizonte, tão rápido! Eu tinha apenas uma preocupação, um anseio: ver
Tróia de novo. Atravessar as suas portas, percorrer as suas ruas, tocar os seus
edifícios, sim, mesmo aqueles que nunca me tinham interessado. Agora eram todos
preciosos. Endireitei-me e aterrei suavemente mesmo em frente da porta sul, a maior
de todas. Quando a observara no dia em que chegara a Tróia, o topo parecera-me
alcançar o céu, mas agora que a via de cima, sabia que terminava muito abaixo das
nuvens. Estranhamente, quando pousei os pés no chão, eles não levantaram qualquer
poeira. Mas eu estava deslumbrada com o facto de saber que estava de regresso a
Tróia. Ouvia os pássaros no prado à minha volta, sentia o odor sonolento dos
campos ao meio-dia. À minha direita via manadas de cavalos pardos a pastar, os famosos
cavalos da planície troiana. Estava tudo tranquilo e ordenado. À distância, vi uma
pequena casa de pedra, com cobertura de telhas, no meio de um arvoredo. Queria
aproximar-me, bater à porta. Mas era muito longe e eu virei-me para Tróia.
Tióia!
A magia de Tróia erguia-se perante os meus olhos, dançando contra o azul do céu.
As suas torres eram as mais altas que o homem já construíra, as suas muralhas as
mais fortes e belas e, no interior…, ah, no interior estavam todas as glórias do
mundo! Tróia tremeluzia como uma miragem, sussurrava os seus segredos, atraía-me.
Dirigi-me à entrada. Para minha surpresa, estava aberta. As espessas portas de bronze
estavam completamente abertas e, para lá delas, o caminho que conduzia à cidadela
era largo e chamativo. Atravessei a porta habitualmente vigiada e não me
indaguei sobre o porquê de não haver nenhum guarda, nenhum soldado. Já no interior,
descobri que estava em silêncio, nada de barulho de carruagens rangendo, nada de
risos, nada de vozes. Continuei a caminhar em direcção à cidadela, aquele aglomerado
de palácios e de templos coroando o cimo de Tróia. Conseguia ver o seu brilho à
distância, a pedra branca atraindo-me como uma deusa. Estava totalmente deserta,
e eu começava agora a ouvir os ecos nas casas vazias pelas quais ia passando. Para
onde tinham ido as pessoas? Eu procurava a cidadela, onde deveria estar o meu
povo. Príamo e Hécuba deviam estar no seu palácio, Heitor e Andrómaca no deles,
os muitos filhos e filhas de Príamo e Hécuba nos seus aposentos atrás do
palácio real, cinquenta filhos e doze filhas, cada um com a sua casa. E entre o
templo de Atena e o palácio de Heitor estaria o meu e de Páris, imponente. Estava
lá. Era perfeito; tão perfeito como Páris e eu o imagináramos pela primeira vez,
muito antes de ser colocada a primeira pedra. Quando nos deitáramos juntos na
nossa cama perfumada e nos divertíramos a imaginar a nossa casa perfeita. Ali estava».
In Margaret George, Helena de Tróia, 2006, tradução de Isabel Penteado, (Chádascinco,
livros com sexto sentido), Saída de Emergência, 2010, ISBN 978-989-803-276-8.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT