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de wikipedia e jdact
Dia 9
de Dezembro de 1939. Salónica, Grécia
«Um
a um, sob a luz que antecedia o alvorecer de Salónica, os camiões trepavam
penosamente a íngreme estrada. Todos eles aceleravam um pouco a marcha no cimo;
os condutores estavam ansiosos por regressar à escuridão da estrada campestre
descendente que sulcava as florestas em redor. Todos os condutores se viam,
porém, obrigados a dominar a ânsia. Nenhum deles podia deixar o pé escorregar
do travão ou pisar o acelerador para além de um determinado ponto; tinham de
semicerrar os olhos, para firmar melhor a vista, atentos a qualquer súbita paragem
ou a uma curva inesperada no escuro. Tudo estava escuro. Não havia faróis
acesos; a coluna deslocava-se unicamente à luz da noite grega, com nuvens
deslizando baixas a coar o luar grego. A jornada era um exercício de
disciplina. E a disciplina não era estranha para aqueles condutores, nem
tão-pouco para os viajantes que seguiam ao lado dos condutores. Todos eles eram
sacerdotes. Frades. Da Ordem de Xenope, a mais austera irmandade monástica sob
a autoridade do Patriarcado de Constantino. A obediência cega coexistia com a
autoconfiança: eram disciplinados até ao instante da morte. No camião que abria
a marcha, o jovem sacerdote barbado despiu a sotaina, sob a qual trazia
vestuário de trabalhador, uma camisa rústica e calças de tecido grosso. Enrolou
a sotaina e colocou-a no vão atrás do assento de espaldar alto, enfiando-a sob
peças desgarradas de lona e tecido. Dirigiu-se ao condutor de batina à sua
ilharga. Já só faltam uns oitocentos metros. O trecho de linha férrea corre
paralelamente à estrada cerca de noventa metros. Em descampado; há-de ser
suficiente. O comboio estará lá?, perguntou o frade de meia-idade, a
constituição robusta, com os olhos na escuridão. Sim. Quatro carruagens de
mercadorias e um único maquinista. Não leva fogueiro. Não leva mais pessoal
nenhum. Nesse caso vai servir-se de uma pá, disse o sacerdote mais velho,
sorrindo mas sem ironia no olhar. Vou servir-me da pá, retorquiu simplesmente o
mais jovem.
Onde
está a arma? No compartimento das luvas. O sacerdote vestido de trabalhador
estendeu a mão para a frente e accionou o fecho da tampa do compartimento, que
se abriu. Enfiou a mão no oculto e tirou de lá uma pesada pistola de grosso
calibre. Habilidosamente, o sacerdote retirou o carregador da coronha,
verificou as munições e voltou a introduzi-lo com um estalido. O som metálico
tinha o seu quê de peremptório. Um instrumento poderoso. Italiana, não é? É,
respondeu o sacerdote mais velho, sem comentários, unicamente com tristeza na
voz. Condiz. É uma bênção, creio bem. O mais jovem introduziu a arma no cinto.
Telefona à família? Foram as ordens que me deram... Era manifesto que o
condutor tinha vontade de dizer qualquer coisa mais, mas dominou-se.
Silenciosamente, agarrou-se ao volante com mais firmeza do que era necessário. O
luar rompeu momentaneamente através das nuvens nocturnas, iluminando a estrada
que sulcava a floresta. Costumava brincar aqui em criança, disse o mais jovem. Corria
pelos bosques e encharcava-me nos ribeiros... Depois secava-me nas grutas da
montanha e fingia ter visões. Fui feliz nestes montes. O Senhor quis que
voltasse a vê-los. É misericordioso. É bom. A lua desapareceu. Sobreveio
novamente a escuridão.
Os
camiões entraram numa curva ampla para oeste; o matagal tornou-se mais esparso
e ao longe, quase indistintos, surgiram os contornos de postes telegráficos,
hastes negras recortando-se contra a noite cor de cinza. A estrada tornava-se
mais recta e larga, fundindo-se com uma clareira que se estendia talvez cem
metros entre um maciço e outro: uma zona plana e árida inserida na miríade de
montes e matas. No centro da clareira, com a carcaça obscurecida pelas trevas,
encontrava-se um comboio. Imóvel mas não destituído de movimento. Da locomotiva
saíam anéis de fumo que se erguiam em espirais pela noite dentro. Em tempos que
já lá vão, disse o sacerdote jovem, os agricultores reuniam as ovelhas e
traziam os seus produtos para aqui. Havia sempre uma grande confusão,
contava-me o meu pai. Estalavam constantemente disputas acerca do que pertencia
a quem. Eram histórias divertidas... Lá está ele! O feixe de uma lanterna
rompeu as trevas. Descreveu um duplo círculo e a seguir imobilizou-se, agora
com o foco branco assestado sobre o último vagão de mercadorias. O sacerdote
trajado de operário tirou do bolso da camisa uma lanterna tipo lapiseira,
apontou-a para diante e premiu o botão rigorosamente durante dois segundos. O
reflexo, atravessando o pára-brisas, iluminou fugazmente o pequeno recinto. O
olhar do mais novo foi rapidamente atraído para o rosto do seu irmão de
confraria. Notou que o companheiro mordera o lábio; escorregou-lhe pelo queixo
um fio de sangue, que se tornou baço na barba grisalha aparada rente». In Robert
Ludlum, The Gemini Contenders, 1976, Os Gêmeos Rivais (Gêmeos não se amam), tradução
de Teixeira Aguilar, Publicações dom Quixote, Lisboa, 1986/1987, edição 12F e C1101,
Dlegal 14357/86.
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