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de wikipedia e jdact
Crónicas
safadas
«No
final dos anos 80 do século XX do segundo milénio, um grande amigo, desses de
uso diário, cansado de me ouvir reclamar de uma conjuntural falta de dinheiro e
de oportunidades de ganhá-lo com relativa honestidade e regularidade dentro do
meu métier, a escrita, num Brasil que
emendava uma crise económica atrás da outra, disse-me: vou levar-te p’ra
conhecer o secretário. Eu tinha tido uma ideia oportunista feito o diabo para
apresentar ao secretário, cândida picaretagem,
que poderia tirar-me do sufoco financeiro, ou assim sonhava o pessimista
atávico que, em mim, tenta se passar por canhestro optimista. Era mais uma de
minhas brilhantes ideias de me…, uma autêntica B.I.M., ou simplesmente bim,
como eu as chamo no meu jargão idiossincrático. Imagino que todo mundo seja
acometido de uma bim, vez por outra, mais uns que outros, é verdade. Normal. No
meu métier, assim como no desse meu
amigo, e até mesmo no do secretário, negrinho costuma ter uma bim atrás da
outra. Se tem sorte e juízo, deita logo fora a bim, de modo a não perder tempo
com ela. Mas sei de quem, por exemplo, tenha escrito duzentas, trezentas
páginas de um romance fuleiro até se dar conta de que aquilo tinha sido mais
uma de suas brilhantes ideias de me… O tal secretário era o Morais, já na época
renomado jornalista e autor de pelo menos dois livros que eu tinha lido com
grande admiração: A ilha, escrito nos ainda ditatoriais anos 70 do
século passado sobre a tão mitificada quão demonizada Cuba socialista, e Olga,
que conta a vida da militante comunista Olga B., de origem alemã, mulher de Carlos
Prestes, presa e despachada p’ra Alemanha nazista pela ditadura de Getúlio p’ra
morrer num campo de concentração. Morais, que sempre teve um pé na política,
emprestava ao PMDB a sua reputação intelectual e uma tintura de esquerda
aderindo como Secretário de Estado da Cultura ao primeiro escalão do novo
governo de São Paulo, encabeçado por Orestes.
Ao
entrar com o meu amigo no gabinete, todas as minhas dúvidas sobre como comportar-me
diante de um Secretário de Estado dissiparam-se no acto diante da simpatia e
afabilidade tipicamente mineiras do homem. Depois de nos cumprimentar
efusivamente no rés-do-chão, o secretário apoltronou-se atrás de sua
escrivaninha senhorial, de alguma madeira de lei escura, tudo assente num
estrado monárquico que alçava a sua autoridade uns dois palmos acima do comum
dos contribuintes. Ao fundo, pendurada na parede, entre as bandeiras do Brasil
e de São Paulo, uma foto do novo governador prognata e ex-narigudo (fez
plástica e ganhou um nariz estilo tobogã)
que, a julgar pelo noticiário, vivia enrolado num punhado de escândalos típicos
da governabilidade hodierna, como licitações fajutas de obras e compras públicas. Depois de uma conversa
genérica, o meu diligente amigo tratou de sintetizar a minha não exactamente
vasta biografia como escritor, dois romancinhos finos que mal paravam de pé se
escorando mutuamente na estante, e o meu ainda mais modesto currículo
universitário, resumido a um diploma em administração de empresas, duas
faculdades começadas e abandonadas (ciências sociais e jornalismo) e um curso
de mestrado em teoria literária que acabou não resultando em tese, pois tive
que me virar na vida e fiquei sem tempo de me afundar no estudo. Mas prometo
escrever uma tese na próxima encarnação, se eu não voltar à Terra como um
tatubolinha míope. Num esforço nada subtil de venda da minha pessoa, o meu amigo
procurava convencer o secretário de que eu estava a apresentar uma proposta
cultural ao governo do Estado, preparando o terreno p’ro meu bote». In Reinaldo
Moraes, O Cheirinho do Amor, Editora Alfaguara/Objectiva, 2014, 978-857-962-338-7.
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