Cortesia
de wikipedia e jdact
Um
jornalista levado dos diabos
«Vi
que a vida era má e escrevi estas cartas. Se as leres no meio de um festim, as
porás de parte com enfado, mas buscarás a sua consolação quando o mundo te
fizer chorar».
Carta
I
«(…)
Meu
amigo:
Escrevo-te
de longe, de muito longe, perdido nos confins deste meu bairro onde só muito
fraco chega o rumor da grande cidade. De que hei de falar? Da Vida? Pois seja.
Tu vens para ela, para o imenso brouhaha. A vida é a escola do cinismo.
Trazes coração? Esmaga-o ao entrar como uma coisa que nos compromete, que nos
avilta. Se acaso és bom tolice não venhas. Aqui para triunfar, é preciso ser
mau, muito mau. Sê mau, cínico, hipócrita, e persistente que vencerás. Serás
aclamado, respeitado e invejado. Ri do Bem e da Virtude, da Alma e do Sentir.
Ri de tudo, que é preciso que rias. Abafa um protesto com um sorriso, uma
agonia com uma gargalhada, um estertor com uma praga. Sê polido, meu amigo.
Encobre a raiva sob o riso, e o riso sob o pesar. Sê mau, sobretudo. Se a alma
compromete estrangula-a, se o riso desmascara sufoca-o, se o choro atraiçoa
esfibrina-o às gargalhadas. Não ames nem creias. Todo o homem que ama é homem
perdido, e todo aquele que crê nunca será ninguém. Odeia sempre. Odeia os que
sobem e os que pretendem subir, odeia os que subiram e os que um dia subirão.
Odeia todos e desconfia. Lembra-te que o Ódio dá mais prazeres que o Amor. A
satisfação de ver agonizar um canalha, quer ele seja um mártir, quer ele seja
um ladrão, é maior que a de sentir os braços opulentos de uma mulher que se
entrega. É menos um. Sê pois, forte como o diamante e como o Ódio. No Amor
gentil comédia sê pródigo, e sobretudo nunca ames uma só mulher. Se és bom
serás ridículo, se és mau serás temido. Sê mau sempre. Este farrapo a que se
chama Vida foi, é e há de ser sempre assim. Tudo é egoísmo. Se és bom morrerás
como Judas, se és mau meu amigo serás lembrado como Satã. Vem, mas vem cínico.
Triunfarás, terás ouro, amantes, mulheres, o diabo. Acredita que metade da
humanidade nasceu para se rojar pela lama, para que tu, eu, todos os maus,
todos os cínicos, a esmagássemos e lhe cingíssemos fraternalmente as carnes com
um chicote. Depois da morte há o Nada. Portanto, meu caro, aqueles que o sabem,
o que pensam é em sugar a vida com um furor de agiotas sem entranhas. Isto é
como no mar; já Shakespeare dizia que o mugem vive para ser tragado pelo
lúcio.
Ou
serás vencido ou vencedor. Se vencido esperam-te todas as humilhações, desde o
desprezo até a compaixão. Se vencedor todos os triunfos, desde o respeito ao
Capitólio. Luta sempre calado, fino, sabido, que se não tens jeito para isto
serás um eunuco eterno, castrado para a Vida, para o Amor e para o sonho. A
raiva também tem o seu gozo, o Ódio também tem o seu amor. E o amor do Ódio é
maior porque é mais forte. Não poderás gozar e serás mais desprezado do que uma
serapilheira que o uso condenou. A carne é matéria como a rocha, a rocha é
matéria como a flor. Da mulher honesta à prostituta não há diferença, a
distância de uma à outra é nula. Não beijam ambas? Uma por prazer, outra por
precisão. Pois, meu caro, eu prefiro a prostituta sempre. Acredita que todos se
vendem, homens e mulheres, palhaços e imperadores, cristos e mendigos: a
questão é de preço e o preço sufoca todas as consciências, todas as revoltas. Acredita
que falta quem compre toda a gente que se quer vender. A mulher mais honesta
capitula, e aquilo a que tu chamas acaso, chamo eu persistência, e a
persistência gasta a vida como a água gasta a rocha. Tu és filho de uma
prostituta pois que tua mãe só foi de teu pai e teu pai foi o primeiro a quem
ela se entregou, que depois o egoísmo do seu amor fez conservar junto de si... O
seu corpo tinha gozos inusitados que ele demandou primeiro. E se teu pai não fosse
dela, seria o primeiro que lhe agradasse, o primeiro que a sua carne lhe
impusesse, o primeiro que passasse à sua rua. Assim, tu és filho de um operário
como o poderias ser de um assassino. Podia mais a sua carne do que ela, mas o
seu egoísmo foi maior do que a sua carne. A vida é uma luta brutal .
(Tourgueneff).
Tu
crês em Deus? Crês sim, que bem o sei. Pois bem; vai dizer-lhe que eu o odeio com
toda a força do meu ódio. Tu que te dás com ele, que crês nele, que és amigo
dele, vai dizer-lhe que ele é mais vil do que as coisas vis. Vai dizer-lhe que
eu o odeio, porque ele deixou morrer aquela criatura aqui do lado, cujos seis
filhos abandonados me vieram comer o meu jantar. Vai dizer-lhe o ódio que lhe
tenho por ele deixar morrer aquele justo, que por ser bom teve de se matar;
diz-lhe finalmente que nada disto se deve fazer quando se é Deus. Que me odeie
agora também porque eu dei o jantar aos pequenos que não o tinham; que me odeie
porque a última camisa a dei a um pobre que quase ma roubou; que me odeie porque
eu o castigo como no outro dia castiguei um velho que maltratava um cão. Anda, vai
dizer-lhe que me odeie, que se avilte ainda mais se é capaz...» In
Fred Teixeira, Extrema, 26 de Outubro
de 2006.
In
Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira,
Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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