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A escumalha anda toda em polvorosa com os rumores da doença mortal de Sua Majestade
e com um disparate qualquer sobre a princesa Isabel estar na cidade. Cuspiu para
a terra. Idiotas. Até eram capazes de acreditar que a Lua é de seda, se houvesse
gente suficiente a jurar-lho. Não se deu ao trabalho de verificar os
documentos. Se fosse a vós, mantinha-me longe das multidões, aconselhou, fazendo-nos
sinal para avançarmos. Ao passarmos sob a torre de vigia, ouvi, nas nossas
costas, aqueles que tinham sido travados começarem a protestar aos gritos. Mestre
Shelton tornou a guardar os documentos no alforge. Ao abrir o manto, revelou uma
espada larga presa às costas. Ao vislumbrar aquela arma, fiquei momentaneamente
fascinado. Disfarçadamente, levei uma mão à adaga que trazia embainhada no
cinto, um presente de mestre Shelton quando eu fizera catorze anos. Sua Majestade,
o rei Eduardo... está a morrer?, arrisquei perguntar. Claro que não, replicou ele.
O rei tem estado doente, nada mais, e as pessoas culpam o duque por isso, da mesma
maneira que o culpam por quase tudo o que acontece de mau na Inglaterra. O poder
absoluto, meu rapaz, tem o seu preço. Cerrou os maxilares. E agora, fica
atento. Nunca se sabe quando é que nos vai aparecer pela frente algum velhaco capaz
de nos degolar só para nos ficar com a roupa. Não duvidei das suas palavras. Londres
não era, de todo, o que eu imaginara. Em lugar das avenidas bem ordenadas e cheias
de lojas que povoavam a minha imaginação, atravessámos um autêntico emaranhado de
ruelas torcidas, com lixo amontoado por toda a parte e das quais partiam becos
sinuosos que iam desembocar numa sinistra escuridão. Por cima de nós, fileiras de
edifícios delapidados amparavam-se uns nos outros como árvores tombadas, as
suas varandas em ruínas unindo-se para bloquear a luz do sol. Reinava uma calma
sinistra, como se toda a gente tivesse desaparecido, e o silêncio resultava
ainda mais desconcertante por suceder ao clamor que deixáramos para trás, junto
à porta da cidade. De súbito, mestre Shelton parou. Escuta.
Fiquei
com todos os sentidos alerta. Apercebi-me de um som abafado que parecia chegar de
todo o lado em simultâneo. O melhor é esperarmos, recomendou mestre Shelton. Segurando
mais firmemente as rédeas do Cinábrio,
fi-lo desviar-se para um lado instantes antes de a rua ser invadida por uma turba.
A sua chegada foi tão inesperada que, apesar de eu estar a segurar firmemente as
rédeas, o Cinábrio começou a empinar-se.
Receando que ele espezinhasse alguém, desci da sela e segurei-o pelo freio. A multidão
passou à nossa volta. Barulhenta a ponto de nos ensurdecer, era uma mistura muito
diversa de gente a cheirar a suor e a esgotos e fez-me sentir como uma presa. A
minha mão começou a descer para a adaga no meu cinto, mas então percebi que ninguém
estava interessado em mim. olhei para mestre Shelton, que continuava montado no
seu imponente cavalo baio. Ele gritou-me uma ordem que não consegui entender.
Estiquei o pescoço, fazendo um esforço para o ouvir por cima do barulho. Torna a
montar!, gritou ele outra vez, com o avançar da multidão em tropel quase a deitar-me
por terra. A custo, lá consegui subir de novo para o dorso do Cinábrio e então fomos levados na maralha,
navegando por entre toda aquela gente até transpormos uma passagem estreita que
foi desembocar à beira-rio.
Fiz o
Cinábrio parar. Diante dos meus olhos
corria o Tamisa, as algas dando-lhe a aparência de jaspe líquido. Rio abaixo, lá
mais ao longe, envolta em névoa, uma estrutura de pedra impunha-se à paisagem. A
Torre de Londres. Detive-me, incapaz de desviar os olhos da infame fortaleza real.
A meio galope, mestre Shelton aproximou-se pelas minhas costas. Eu não te disse
para ficares atento? Anda. Não é altura para apreciar as vistas. As multidões de
Londres podem ser tão ferozes como um urso num fosso. Forçando-me a desviar o
olhar, observei o Cinábrio, os
flancos tremiam-lhe, cobertos por uma fina camada de transpiração, e as suas narinas
fremiam, mas parecia não ter sofrido uma beliscadura. A multidão correra para mais
adiante, para uma estrada larga delimitada por um alinhamento de casas e de letreiros
de tabernas a abanarem. Enquanto avançávamos, levei a mão à testa, embora já fosse
tarde; mas, por milagre, não perdera o chapéu». In CW Gortner, O Segredo dos
Tudor, 2011, tradução de Miguel Romeira, 20/20 Editora, Topseller, 2014, ISBN
978-989-862-643-1.
Cortesia
de Topseller/20/20Editora/JDACT