quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Maina Mendes. Maria Velho Costa. «Como erguida espátula de nogueira seca, as mãos cruzadas no arremesso da laçada do bibe ruída, Maina Mendes olha o fogo da cozinha. As chamas, de tão perto, batem-lhe na cara cores…»

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A Mudez
«(…) Depois, logo a apanhar-lhe a mão, vem um menino pesado, franja espessa sob o boné de marinheiro e os olhos onde os de sua mãe, na vergonha da rua, no caminho escolhido certo e rápido. A fita de azul quebrado ora sobe ao ar, logo cai na cabeça coberta de pelagem muita e crespa, em torno à cara de compacto susto, até ao cabeção largo e exacto, que tudo suporta. A outra mão vai apertando rijo o arco e o pau e vai seguindo puxando, olhando dos trens as rodas, da gente os pés, sempre atrás, sempre guiado sob o terrível desprezo da janela que se afasta. A rua rebenta em gritos, em redes de galinheiras, perus assustados que se adelgaçam do pau que os comanda, vacilando em grupos abaixo de Maina Mendes. A rua para ali vai e por trás dela as coisas estão paradas de uma maneira fixa e precisa, de sempre, pois o espanador de arrancadas penas passa e passa o pano peloso, mas mantêm-se os braços em meio abraço negro dos cadeirões na obscuridade, os crochets que protegem e estiolam na luz parca, as volutas trabalhosas dos pés das mesas, as porcelanas azuis onde se assentam tristes criaturas esperando e do tamanho de um só dedo, as velas onde a cor esmorece e os búzios ventando secretamente. Nos jarrões chineses bóiam bonecas palidíssimas, de olhos que espreitam continuadamente e mãos minúsculas e aguçadas na profusão de milhentas flores inverosímeis engordando-lhes por toda a bojura. Na vitrine pesam, num só corpo, três macacos ferrosos, o que se esmaga a boca, o que se esmaga os olhos, o que se esmaga as orelhas. Num quadro estão árvores presas, estampadas, lúgubres numa tarde que acaba sempre já em o cachaço sem comer. Noutro, cães mordem parados a chaga aberta de um veado revirando os olhos debaixo de uma rodela opaca que é a lua. Há um retrato de homem barbado, os olhos sempre postos nos cortinados descendo do estuque macerado em florais lá alto, na sempre penumbra da sala.
Maina Mendes, as costas para a rua, não sofre. A sala pertence-lhe por direito de mercê. Coisas ali não estão porque as quebrou pouco depois do berço. Quebradas são agora todas, porque após conhecidas e tocadas não lhes ficou na posse, não lhe ficou qualquer amor. Às arrecuas sai e tão certo o faz, tão habitual o trajecto moroso, preparado ainda de esperançosa raiva para a tremenda imobilidade dos cortinados, que, como sempre, acaba na frieza na cabeça que é do puxador de vidro verde e limoso e facetado.

«Las palabras son muertas
junto a tu rayo amarillo,
junto a tu cola roja,
junto a tus crines de luz amaranto,
son frias las palabras».
Pablo Neruda, in ‘Ode al fuego

Como erguida espátula de nogueira seca, as mãos cruzadas no arremesso da laçada do bibe ruída, Maina Mendes olha o fogo da cozinha. As chamas, de tão perto, batem-lhe na cara cores que vão do vermelho febril a um ocre convulso. Seca e lisa e sem medo diante do fogão negro debruado de amarelo areado, de entranhas estorcidas em labareda e que cavamente lhe solicitam a conivência. A Hortelinda mete-lhe de esgueira, a mão pulada logo, mais uma acha, fungando daquela permanente ameaça maior e próxima. Os troços roncam já, num fulgor acamado sobre o negro, negro e laranja e amarelo de água, barbas vivas alteando-se e esfumando espesso e a mão da Hortelinda ateia, no medo habituado. Os tachos, a colher de pau sebado entalada nas tampas, vão bafejando de oras em quando, suando sabores que se pegam aos bancos e ao ladrilho passado a pano e molhado de água secante, odor gordo, maciço e apenas diferente da grossura largada do óleo de fígado de bacalhau porque morno e pairante por toda a cara. Maina Mendes cantarola de voz rouca, grave para a goela de apito que a Hortelinda lhe diz ter, credo menina, tão caniço de pescoço e um ronco assim. Cantarola com os dedos agora franjados de massa tenra, atenta a moer nas palmas uma barriga branca para a criatura mona que a Hortelinda sempre frita no estalido do óleo quente. Assim é o contentamento de Maina Mendes. Nada na casa se concerta tanto com seu humor habitual como os crepitares e fumegares e derrocadas hostis da lenha, as frituras e águas ferventes, as muitas bocas de apelo do fogão negro. Janelas ao desejado lhe são também as fendas e forno aberto para um movimento ateado». In Maria Velho da Costa, Maina Mendes, 1969, Publicações dom Quixote, 2001, ISBN 972-201-075-1.

Cortesia de PdQuixote/JDACT