Cortesia
de wikipedia e jdact
O Templo do Céu
«Os
deuses falam por sinais. Pode ser uma folha caindo no Verão, o grito de um animal
moribundo ou a ondulação feita pelo vento num lago. Pode ser o fumo junto ao
solo, uma abertura nas nuvens ou o voo de uma ave. Mas naquele dia os deuses
enviaram uma tempestade. Foi uma tempestade enorme, uma tempestade que seria
recordada, embora o povo não nomeasse o ano por essa tempestade. Pelo
contrário, chamaram-lhe o Ano em que chegou o Forasteiro. Isto porque um
forasteiro chegou a Ratharryn no dia da tempestade. Era um dia de Verão, o
mesmo em que Saban quase assassinou o seu meio-irmão. Naquele dia os deuses não
falaram. Gritaram. Saban, como todas as crianças, andava nu no Verão. Tinha
menos seis anos que o seu meio-irmão, Lengar, e como ainda não passara as provas da idade adulta, não tinha
cicatrizes tribais nem marcas de morte. Mas as provas estavam apenas a um ano
de distância e o pai instruíra Lengar para que levasse Saban à floresta e lhe
ensinasse onde se encontravam os veados, onde se escondiam os javalis, onde
ficavam as tocas dos lobos. Lengar ofendera-se com a tarefa, portanto, em vez
de ensinar o irmão, arrastou-o por moitas de espinhos de modo a fazer sangrar a
pele do rapaz queimada pelo sol. Nunca te vais tornar um homem, escarneceu,
Lengar. Sensato, Saban nada disse. Havia já cinco anos que Lengar era um homem,
de modo que tinha no peito as cicatrizes azuis da tribo e nos braços as marcas de caçador. Trazia consigo um arco
feito de teixo, com pontas de osso e uma corda de tendão bem esticada e untada
com gordura de porco. Vestia uma túnica de pele de lobo e tinha o cabelo comprido
entrançado, atado com uma fita de raposa. Era alto, de rosto estreito, sendo
considerado um dos grandes caçadores da tribo. O seu nome significava Olhos de
Lobo, uma vez que o seu olhar tinha uma tonalidade amarelada. Tinham-lhe dado
um nome ao nascer mas, como muitos na tribo, recebera outro ao tornar-se adulto.
Saban
também era alto e tinha longo cabelo negro. O seu nome significava Favorito e
na tribo muitos pensavam que era adequado, já que apenas com doze Verões, Saban
prometia ser formoso. Era forte e esguio, trabalhava muito e sorria quase sempre.
Lengar raramente sorria. Tem uma sombra no rosto, diziam dele as
mulheres, apenas quando não as pudesse ouvir, pois era provável que Lengar viesse
a ser o próximo chefe da tribo. Lengar e Saban eram filhos de Hengall, e este o
chefe do povo de Ratharryn. Durante todo aquele longo dia, Lengar levou Saban
através da floresta. Não encontraram veados, javalis, lobos ou ursos.
Limitaram-se a caminhar, tendo chegado à tarde ao sopé da colina, para ver que
toda a terra a ocidente estava sombreada por uma massa de nuvens negras. Os
relâmpagos riscavam o monte de nuvens escuras em direcção à floresta longínqua,
deixando o céu a arder. Lengar acocorou-se, com uma mão no arco polido, observando
a tempestade que se aproximava. Devia ter já iniciado o regresso a casa, mas
queria assustar Saban, de modo que fingiu não estar preocupado com a
tempestade, que era uma ameaça dos deuses. Foi enquanto observavam a tempestade
que chegou o forasteiro.
Montava
um pequeno cavalo castanho, branco de suor. Como sela usava um cobertor de lã
dobrado e as rédeas eram fios de fibra de urtiga, embora nem necessitasse
delas, já que estava ferido e parecia cansado, deixando a sua pequena montada
escolher o atalho que subia a escarpa íngreme. O forasteiro tinha a cabeça
baixa e os calcanhares pendiam-lhe quase até ao chão. Vestia uma capa de lã
tingida de azul e trazia um arco na mão direita, enquanto do ombro esquerdo
pendia-lhe uma bolsa cheia de flechas ornamentadas de penas de gaivota e corvo.
Usava uma barba negra e curta, e as marcas tribais do seu rosto eram cinzentas.
Lengar sussurrou a Saban que ficasse em silêncio, seguindo depois o forasteiro para
oriente. Lengar tinha uma flecha metida no arco, mas o forasteiro nem uma só
vez se voltou para ver se estava a ser seguido, de modo que Lengar contentou-se
em deixar a flecha descansar na corda. Saban gostaria de saber se o cavaleiro ainda
vivia, pois parecia um morto, inerte, atirado para o lombo do cavalo. O
forasteiro era um Fronteiriço. Até Saban o sabia, pois apenas o Povo da Fronteira
montava pequenos cavalos peludos e usava cicatrizes cinzentas no rosto. O Povo
da Fronteira era inimigo, porém Lengar não soltou a flecha. Limitou-se a seguir
o cavaleiro, levando Saban atrás de si, até que por fim o Fronteiriço chegou à
beira das árvores onde cresciam fetos. Aí, o forasteiro parou o cavalo e ergueu
a cabeça para olhar a suave elevação, enquanto Lengar e Saban se acocoravam,
escondidos por trás dele.
O
forasteiro olhou os fetos e mais ao longe o pasto, onde o solo era mais fino, depois
das marcações. Havia túmulos espalhados pela crista baixa do terreno. Os porcos
comiam os fetos, enquanto o gado preferia a terra de pastagem. Aqui ainda havia
sol. O forasteiro manteve-se muito tempo nos limites do bosque, em busca de
inimigos, mas sem os ver. Para norte do sítio onde se encontrava, havia campos
de trigo limitados por espinheiros, sobre os quais as primeiras nuvens, arautos
da tempestade, seguiam a sua sombra; porém à sua frente havia sol. Havia vida
diante de si e escuridão por trás. O pequeno cavalo, solto, agitou-se subitamente
junto aos fetos. O cavaleiro deixou-se levar. O animal subiu a encosta suave
até aos túmulos. Lengar e Saban esperaram até o forasteiro desaparecer no
horizonte, depois seguiram e, chegando ao cimo, acocoraram-se numa vala
funerária, para verem que o cavaleiro se tinha detido junto ao Velho Templo. Ouviu-se
o ribombar de um trovão e uma rajada de vento alisou a erva em que o gado
pastava. O forasteiro escorregou de cima do cavalo, atravessou a enorme vala do
Velho Templo e desapareceu no meio das frondosas aveleiras que cresciam dentro
do recinto sagrado. Saban percebeu que o homem vinha em busca do santuário. Mas
Lengar estava atrás do Fronteiriço, e Lengar não era dado a piedade». In Bernard
Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor
Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.
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