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Como vês, estamos muito mais próximos um do outro do que poderias supor. O teu fim
pode ser o meu também. Por isso preciso que me ajudes, e se o fizeres, hei-de
comprar-te a liberdade, se um dia a tua cabeça for a mercado. Sabes que nunca
hei-de confiar em ti, disse a aia, após um momento de silêncio, olhando o ferreiro
de soslaio. Mas também já não confio em ninguém. Diz-me o que pretendes. Uma chuva
miudinha voltava, entretanto, a cair sobre a vila. Ao longe encerravam-se, pesadas,
as portas da igreja. Apesar da estreiteza da sua fachada e da altura baixa do terraço
superior, quando comparada com as casas vizinhas, quem lá entrava pela primeira
vez admirava-se sempre pelo grande e intrincado número de divisões que ali havia,
e da ilusão de tamanho que estas davam. Por esse motivo, era conhecida como A colmeia, e não havia habitante em
toda a cidade que não soubesse da sua existência nem dos assuntos ali tratados.
Ficava perdida entre o bairro mais antigo, nas traseiras do casbah, e para lá chegar era preciso atravessar
ruas tão estreitas que um cavalo mais gordo não era capaz de por lá passar. E
naquele labirinto de casas frágeis de adobe junto ao sopé da montanha a sul praticamente
nunca chegava a luz do sol, senão através de pequenas nesgas de curta duração,
que de nada serviam para aquecer um lugar sempre fresco, onde a humidade se estabelecia
nos meses de Inverno, e onde o vento assobiava, soprado do vale montanhoso e guiado
através das encostas pedregosas. Assim era também a colmeia, escondida, complexa
e parca de luz, tanto no exterior como na complexa rede de corredores e pequenos
quartos que a compunham por dentro.
A porta
principal dava para um minúsculo pátio entre as casas, sobre qual se debruçavam
janelas apertadas e machrabiryas (varanda cercada por um gradeamento fechado de
madeira que permite ver sem ser visto do exterior) atrás das quais era impossível
saber se alguém ali espreitava para fora. Tudo era pintado da cor barrenta do adobe
e da poeira que errava pelo ar, trazida pelo vento e depositada até nos recantos
mais escondidos e abrigados. Normalmente os homens esperavam, junto a uma esquina,
que ninguém por ali passasse antes de se dirigirem furtivamente até à tosca porta
de madeira, onde davam três pancadas apressadas com os nós dos dedos e
esperavam que o empregado, do outro lado, não tardasse em abri-la. Depois
sumiam-se na escuridão dos corredores estreitos, abertos a intervalos regulares
com entradas para pequenos cubículos sem janelas e chão de terra batida, coberto
apenas por velhas carpetes de pele de cabra. Porém, nas traseiras e junto a um
terreno descampado e abandonado de cultivo devido ao excesso de calhaus no solo,
havia ainda outra pequena porta disfarçada atrás de uma cerca, por onde apenas os
visitantes privilegiados entravam, livres dos olhares indiscretos da vizinhança
e das suas línguas afladas, sempre ansiosas por novos mexericos. E ainda que
não houvesse na verdade esconderijo e entrada suficientemente furtiva para escapar
à manha popular que tudo sabia, era sempre por aí que ele entrava, após deixar o
cavalo atrelado nas cavalariças destinadas ao exército, a cem metros de distância.
Uma
vez lá dentro, era logo tomado pelos ritmos sensuais que a orquestra tocava de forma
quase constante, desde a abertura do estabelecimento, até às primeiras horas da
madrugada. Pela complexidade dos corredores era difícil perceber de onde vinha a
melodia, pois esta reflectia-se e misturava-se nos seus próprios ecos, como se fossem
as paredes de adobe as verdadeiras cantoras das notas musicais. E se não fosse um
visitante habitual, dificilmente conseguiria guiar-se ali dentro, apenas pela
miserável luz de duas ou três velas de sebo ardendo não tanto para efeito de alumiar
como de provocar uma atmosfera sedutora e de vício. A intervalos regulares soavam
as pancadas do tambor da orquestra, à distância, e seguindo curvado para evitar
as traves de madeira do tecto, assim foi o visitante percorrendo o templo labiríntico,
rumo à área reservada apenas aos mais abastados, onde as notas do alaúde se misturavam
com os risos das melhores concubinas que o mestre Safir, gerente, conseguia encontrar.
Era uma
pequena sala rectangular e estreita, rodeada a toda a volta por almofadas e tapetes,
que tanto cobriam o chão como as paredes, pintadas de cores quentes e garridas.
Do lado direito, ao fundo, acomodavam-se os músicos, sentados em pequenos
bancos de madeira e compenetrados de tal forma na sua arte que ignoravam tudo o
que decorria no resto do compartimento. Ao lado esquerdo, rodeando duas pequenas
mesas de carvalho, ficava a área de lazer, repleta de almofadas de linho e veludo
ricamente adornadas, onde os visitantes mergulhavam como monarcas. Uma nuvem de
fumo pairava em todo o espaço, visível apenas junto aos pequenos candeeiros de ferro,
cuja luz era quebrada por folhas de latão, côncavas e recortadas de forma
triangular, e o seu odor a sândalo e haxixe era tão intenso que tornava o ar embriagado
e sufocante». In Pedro L. Torres, Isabel, A Condessa Cercada, Saída de Emergência,
2014, ISBN 978-989-637-660-4.
Cortesia
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