sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A Lição de Italiano Maeve Binchy. «A intenção não era magoá-lo ou humilhá-lo; no entanto não deixava de ser como uma bofetada. Ele próprio andara em conflitos na sala de professores. Já lá ia o tempo, nitidamente muito longínquo»

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«Em tempos, decorria a década de 1970, não havia questionário que lhes escapasse. De vez em quando, Aidan encontrava um nalgum jornal de fim-de-semana. É Um Marido Atencioso? Ou então: Que Sabe do Mundo dos Espectáculos? Alcançavam elevadas pontuações nas respostas a Dá-se bem com o/a Seu/Sua Companheiro/a?, e Trata bem os Seus Amigos? Mas isso fora há muito. Nos tempos actuais, se Nell ou Aidan Dunne deparavam com alguma lista de perguntas, já não as preenchiam entusiasticamente nem viam quantos pontos alcançavam. Seria demasiado penoso responderem a: Quantas Vezes Fazem Amor? a) Mais do que quatro vezes por semana? b) Em média duas vezes por semana? c) Todos os sábados à noite? d) Menos que isso? Quem desejaria admitir que era muito menos que isso e saber que tipo de interpretação as mentes que engendravam os questionários tinham aplicado ao reconhecimento de tal facto? Nos tempos que corriam, se algum deles visse um questionário a perguntar: Dão-se bem?, a página seria virada. Apesar de tudo, não houvera nenhuma discussão nem desentendimento. Aidan nunca fora infiel a Nell e tinha a certeza de que ela também nunca prevaricara. Seria arrogância presumir tal facto? Ela era uma mulher atraente; os outros homens achavam-na, indiscutivelmente, digna de um segundo olhar, como sempre acontecera. Aidan sabia que, na sua grande maioria, os homens que ficavam estupefactos quando se provava que as esposas tinham tido relações extraconjugais não passavam de presunçosos e desatentos. Ele, no entanto, não. Tinha a certeza de que Nell jamais se encontraria com mais alguém, que nunca faria amor com outro homem. Conhecia-a tão bem que, se tal acontecesse, ele aperceber-se-ia imediatamente. Fosse como fosse, onde encontraria ela outra pessoa? E se fosse esse o caso, para onde iriam? Não, a ideia era ridícula.
No entanto, era possível que todos pensassem assim. Se calhar fazia parte dos tais aspectos de que não falavam relativamente à passagem dos anos, como, por exemplo, ficarem com dores na barriga das pernas depois de uma longa caminhada, de já não conseguirem ouvir ou perceber as letras das canções pop. Talvez uma pessoa se afastasse simplesmente daquela que imaginara ser o centro da sua vida. Era bem provável que qualquer quarentão à beira dos cinquenta sentisse o mesmo. Em todo o mundo devia haver homens desejosos de que as suas mulheres andassem permanentemente ansiosas e entusiasmadas com tudo. Não apenas no que dizia respeito ao amor e ao sexo, mas também a todas as outras coisas. Há muito tempo que Nell não lhe fazia perguntas acerca do seu trabalho, das suas expectativas e sonhos em relação à escola. Houvera tempos em que ela sabia o nome de todos os professores e de muitos dos alunos; Aidan falava-lhe das suas aulas cheias, dos lugares de responsabilidade, das excursões, das peças da escola e dos seus projectos para o Terceiro Mundo. No entanto, ela agora mal se dava conta do que acontecia. Quando a nova ministra da Educação fora nomeada, Nell encolhera os ombros. Não deve ser pior que a anterior, comentara simplesmente. Nell nada sabia sobre o chamado ano de transição, excepto para dizer que era um luxo desnecessário. Imaginem: dar aos jovens todo aquele tempo para pensarem, discutirem e fazerem as suas escolhas, em vez de deitarem mãos aos livros e prepararem-se para os seus exames.
Aidan, porém, não a censurava. Ele tornara-se muito aborrecido a explicar as coisas. Ouvia o eco da sua própria voz; arrastava-a monotonamente, e as filhas erguiam os olhos para o alto perguntando-se porque teriam de, com vinte e um e dezanove anos de idade, escutar tudo aquilo. Ele tentava não se tornar fastidioso. Aidan sabia que era uma característica dos professores; estavam de tal modo habituados ao público cativo da sala de aulas que podiam alongar-se, fazendo várias abordagens a cada assunto até terem a certeza de que todos os ouvintes tinham captado o sentido. Fazia esforços enormes para se manter ligado à vida da sua família. Nell, porém, nunca tinha histórias para contar nem assuntos para discutir acerca do restaurante, em cuja caixa registadora trabalhava. Ora, por amor de Deus, Aidan, não passa de um emprego. Sento-me lá e recebo os cartões de crédito, os cheques ou o dinheiro dos clientes e dou-lhes o troco e um recibo. Quando o dia acaba volto para casa e no final da semana recebo o meu salário. É o que acontece a noventa por cento das pessoas. Não temos controvérsias, dramas e lutas de poder; somos, apenas, normais.
A intenção não era magoá-lo ou humilhá-lo; no entanto não deixava de ser como uma bofetada. Ele próprio andara em conflitos na sala de professores. Já lá ia o tempo, nitidamente muito longínquo, em que Nell estava sempre ansiosa por saber o que acontecera, a torcer por ele, a defender a sua causa e a declarar que os inimigos dele eram os seus inimigos. Aidan tinha saudades da camaradagem, da solidariedade e do trabalho de equipa dos velhos tempos. Quem sabe, quando se tornasse reitor, tudo isso voltasse... Ou estaria a iludir-se? Possivelmente o cargo de liderança já pouco interesse tinha para a mulher e as duas filhas. O seu lar funcionava sem dificuldades. Pouco antes tivera a estranha sensação de que morrera há algum tempo, mas que todos estavam muitíssimo bem. Nell ia de casa para o restaurante e do restaurante para casa; visitava a mãe duas vezes por semana; não, Aidan não precisava de ir, eram apenas agradáveis conversas de família. A mãe dela gostava de os ver a todos regularmente para saber como estavam. E tu..., sentes-te bem?, perguntara-lhe Aidan. Não sou uma aluna do quinto ano a quem dás aulas de Filosofia para amadores, respondera-lhe Nell. Acho que me sinto tão bem como qualquer outra pessoa. Contentas-te com esta resposta? Mas Aidan, como era evidente, não se contentava. Disse-lhe que não era Filosofia para amadores, mas Introdução à Filosofia, e que não se tratava do quinto ano, mas sim do ano de transição. Nunca esqueceria o olhar que Nell lhe deitara. A mulher ia a dizer-lhe algo, mas depois mudara de ideias. Tinha uma expressão apiedada, mas distante. Fitou-o como quem olha para um pobre mendigo sentado na rua, com o casaco amarrado com uma corda e a escorropichar uma garrafa de vinho. Com as filhas, não se saía melhor. Grania trabalhava no banco e trazia pouco que contar, pelo menos ao pai. Às vezes ele encontrava-a a falar com os amigos e parecia muito mais animada. Com Brigid, era o mesmo». In Maeve Binchy, 1996, A Lição de Italiano, tradução de Luísa Santos, Círculo de Leitores, 2004, ISBN 972-423-253-0.

Cortesia de CLeitores/JDACT