sábado, 20 de fevereiro de 2016

Número Zero. Umberto Eco. «Ontem à noite, antes de me deitar, tomei um Stilnox com um copo de água. Por isso, até àquele momento, ainda havia água. Esta manhã, já não havia»

jdact

Sábado, 6 de Junho de 1992, 8 horas
«Hoje de manhã não corria água da torneira. Blop blop, dois arrotinhos de bebé, mais nada. Bati na porta da vizinha: em casa deles, tudo normal. Terá fechado o manípulo central, disse-me. Eu? Nem sequer sei onde fica, vivo aqui há pouco tempo, bem sabe, e só chego a casa à noite. Meu Deus, mas quando fica uma semana fora não fecha a água e o gás? Eu não. Que grande imprudência, deixe-me entrar, eu mostro-lhe. Abriu o armário por baixo do lava-louça, mexeu em qualquer coisa e a água chegou. Vê? Tinha-o fechado. Desculpe, sou tão distraído. Ah, vocês, os single! Exit vizinha, que agora fala inglês, também ela. Nervos em ordem. Os poltergeist não existem, só nos filmes. E não é que seja sonâmbulo, porque mesmo sonâmbulo não iria saber da existência daquele manípulo, de outro modo tê-lo-ia usado quando acordado, porque o chuveiro verte e arrisco-me sempre a passar a noite de olhos abertos a ouvir aquele pingo o tempo todo, parece que estou em Valldemossa. De facto, acordo muitas vezes, levanto-me, e vou fechar a porta da casa de banho e a que separa o quarto da entrada, para não ouvir aquele gotejar danado. Não pode ter sido, sei lá, um contacto eléctrico (o manípulo, como a própria palavra diz, funciona à mão), nem sequer um rato, que, mesmo que tivesse passado por ali, não teria tido força para girar a coisa. É uma roda de ferro à antiga (tudo neste apartamento remonta há pelo menos cinquenta anos) e, além do mais, está ferrugenta. Portanto, seria preciso uma mão. Humanóide. E não tenho uma chaminé por que pudesse passar o orangotango da Rue Morgue.
Raciocinemos. Todo o efeito tem a sua causa. Pelo menos, é o que dizem. Excluamos o milagre: não vejo porque se há-de Deus preocupar com o meu chuveiro, não é o Mar Vermelho. Logo, a efeito natural, causa natural. Ontem à noite, antes de me deitar, tomei um Stilnox com um copo de água. Por isso, até àquele momento, ainda havia água. Esta manhã, já não havia. Logo, caro Watson, o manípulo foi fechado durante a noite, e não por ti. Alguém, alguns tipos estiveram na minha casa e tiveram medo de que, maís do que o barulho que faziam (andavam com pezinhos de lã), me acordasse o prelúdio da gota, que até a eles incomodava, e talvez se perguntassem como é que não me acordava. portanto, muito astutos, fizeram aquilo que a minha vizinha também teria feito: fecharam a água.


E depois? Os livros estão dispostos na sua desordem normal, poderiam ter passado os serviços secretos de meio mundo a folheá-los página por página e eu não daria por isso. Inútil procurar nas gavetas ou abrir o armário da entrada. Se queriam descobrir alguma coisa, hoje em dia só há uma coisa a fazer: vasculhar no computador. Para não perderem tempo, talvez tenham copiado tudo e voltaram para casa. E só agora, abrindo e tornando a abrir cada documento, se terão apercebido de que no computador não havia nada que lhes pudesse interessar. O que esperavam encontrar? É evidente, quero dizer, não vejo outra explicação, que procuravam qualquer coisa que tivesse a ver com o jornal. Não são estúpidos, terão pensado que eu deveria ter tomado notas sobre todo o trabalho que estamos a fazer na redacção, e que, portanto, se sei alguma coisa sobre a questão de Braggadocio, deveria ter escrito sobre isso nalgum lado. Agora já terão adivinhado a verdade, que tenho tudo numa disquete. Naturalmente, esta noite devem ter visitado também o escritório, e não encontraram nenhumas disquetes minhas. Portanto, estão a chegar à conclusão (mas só agora) de que talvez a guarde no bolso. Somos mesmo uns imbecis, estarão eles a dizer, deveríamos ter revistado o casaco. Imbecis? Cretinos. Se fossem espertos não se dedicavam a um trabalho tão sujo». In Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.

Uma noite serena! 
Cortesia de Gradiva/JDACT