Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) O que progredia sempre, intimidando, entibeando, manietando os homens
que poderiam opor-se às pretensões de Filipe II, ,era a corrupção de Castela,
sabiamente ministrada pelo duque de Ossuna e, Cristóvão de Moura, os
embaixadores espanhóis. Os corruptos usavam na sua linguagem particular termos
que torpemente expressavam a sua visão moral da vida. Assim, cada português que
aderia à causa castelhana, vendendo os seus irmãos, fazia-se crrstão. Mais um traidor era, em seu distorcido critério,
mais um cristão. Jorge de Noronha,
neto do segundo marquês de Vila Real, cuja adesão ao monarca vizinho se revestira
de tanta baixeza como de ridículo, expediu de Almeirim, a 24 de Março de 1580, uma carta típica de fidalgo venal dessa
época, em que o termo cristão se
emprega no sentido que referimos: Que se
deram as cartas e recados de S. M. [Sua Majestade] aos governadores e Braços
[braços ou Estados do reino], e que se fizeram mui boas diligências com todos,
cujo proveito vai aparecendo, porque já os mais deles estão rendidos,
convertidos e feitos cristãos, e que se baptizararn na água das listas de mercês
que S. M. fez a todos, as quais são mal merecidas, porque ainda não estão os caminhos
de Portugal e Guadalupe cobertos de Portugueses. Pede licença para ser ele o primeíro
que o faça, pois talvez muitos o sigam, sendo tão natural nos Partugueses a
inveja.
Queria ele que os portugueses se postassem no caminho de Filipe II, na
sua entrada em Portugal, para o reverenciar, e desejava ser o primeiro desses
portugueses, esperando ainda que o seu exemplo, por emulação, por inveja contagiasse todos os seus compatriotas.
Media o estofo moral dos outros pelos seus próprios sentimentos. Contudo, Sua
Majestade duvidou da veracidade das informações e de tão cornpleta baixeza
moral do informador, porque, à margem do extracto que lhe foi remetido, exarou
a seguinte nota: Fica cá a carta, porque
creio que será, míster enviá-la ao duque ou D. Cristóvão, pela razão que vos disse,
e pela que há a respeito de quem a escreve.
Entretanto, o monarca estrangeiro não tardaria em persuadir-se da
fidelidade canina de Jorge de Noronha, da qual chegara a duvidar, quando teve
conhecimento dos bons serviços do
traidor português, descritos no seguinte extracto de outra sua carta: Que muitos dos procuradores de bom e mutto
bom ânimo no negócío se foram [por ocasião da dissolução das Cortes]; porque os
melhores, já enfadados de não estarem todos de acordo, e de serem os de Lisboa,
que era a cabeça, mal inclinados, começaram a partir. Que Manuel Sousa Pacheco,
um dos procuradores de Lisboa, já não é companheiro de Febo Moniz, porque se fez
cristão, e deu palavra ao bispo e ao arcebispo de Évora, de sê-lo sempre, e que
todos se vão baptizando.
No mesmo papel que remete com a carta (datada de Santarém a 15 de
Março e escrita por um procurador chamado Rodrigo Abreu) o nome que vai riscado
é o dele, Jorge, e declara que assim se deu a ler aos Governadores. Nele representam aos ditos Governadores o
desejo que tem a maior parte dos procuradores de paz e quietação, em conformidade
do que o governo deseja, tudo pelo bem da cristandade. Aí dizem que é um engano
pensar que prara tratarem dos concertos convém que sejam menos, quando todos
querem paz e concórdia, porque já caíram na razão, e vêm que é necessário. O meio que apontam para isto se poder alcançar
é chamá-lo dois a dois, pois chamando-os juntos dizem que não, por não haver
quem queira em público.
Jorge diz que testifica i por que falou com os mais deles. Recomenda o
segredo e a brevidade da execução. Que depois de se conseguir o resultado dirá
quem fez a proposta, para ser agraciado. Adverte que até das terras escrevem
cartas avulsas, em que lhe significam o mesmo, mas que não ousam falar, tanto
pelas agitações que andam, como pelo que diz o vulgo. Pede que se restitua este
papel, porque é de letra conhecida».
In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação
Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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