Abertura
«Esta é uma narrativa construída em torno de uma personagem real assaz
fugidia nas fontes, da época e posteriores, que sobre ela fornecem informação.
Depende muito, portanto, do que se recolheu sobre o contexto em que se
desenrolou a sua vida e as figuras mais importantes que a rodearam. São
sobretudo os dados obtidos acerca desse enquadramento e dessas personagens,
aliás, que salvaguardam a dimensão historiográfica do discurso, o qual, de
outro modo, seria literatura de ficção com laivos históricos, exercício decerto
cheio de interesse mas claramente fora do objectivo proposto, e registo que me
é estranho. Com efeito, a época abrangida, cerca de 1170 (data aproximada dos consórcios dos pais e sogros da
biografada) a 1220 (ano da sua
morte), com alguns avanços e recuos, principalmente estes últimos, é das mais
agitadas da história da cristandade latina do Ocidente medieval, incluindo a
terceira e quarta cruzadas e emergindo do rescaldo da segunda, não faltando por
isso dados onde ancorar as interpretações que aqui desenvolvo ou partilho. Mas o
número de personagens de que fala é necessariamente elevado e a homonímia
levanta problemas frequentes. Alguns exemplos: a coincidência do número de
figuras reais de nome Afonso aqui citadas (Afonso
I de Portugal, este sempre Henriques, portanto raramente
confundível, Afonso VII de Castela e Leão, Afonso VIII de Castela, Afonso IX de
Leão, Afonso II de Portugal e, finalmente, o tio deste, Afonso II de Aragão);
o nome comum à mãe e avó da biografada, respectivamente Leonor de Inglaterra e
Leonor de Aquitânia, por vezes difíceis de destrinçar; os numerosos Fernandos,
entre eles, para cúmulo, os dois irmãos filhos de Afonso IX de Leão, ambos de
nome Fernando, havidos de duas esposas sucessivas, os diversos Sanchos,
Berengárias e Brancas e mais alguns. Estas repetições, consequência do onomástico
restrito das estirpes régias mencionadas, são contingências que o leitor
entenderá como inevitáveis, devendo acrescentar-se-lhes contudo as incoerências
(sobretudo de datas) existentes na bibliografia consultada, de
ponderação obrigatória, e as omissões e outras falhas do autor. Exemplifico: a
solução assumida de citar as múltiplas figuras régias ora precedidas de Dom, ou
Dona, consoante o género, ora despidas do honorífico, mas sem que isso represente
qualquer intenção de desrespeito para com gente tão ilustre. Postas estas
cautelas, apresento-vos D. Urraca.
A infanta Urraca, filha dos reis de Castela Afonso VIII e Leonor,
nasceu entre 1186 e Maio de 1187, data incerta por não existirem fontes
disponibilizadoras de informação directa sobre a ocorrência. Se do nascimento
memória não ficou, nem nos registos do tempo em que viveu, nem em documentação
posterior, sabemos, em contrapartida, ter morrido no dia 3 de Novembro
de 1220, como se lê no obituário do Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra. Foi a primeira castelhana a tornar-se rainha de
Portugal, ao consorciar-se em 1208 com
o infante Afonso, futuro rei Afonso II (1211-1223), inaugurando
uma longa série de casamentos de reis portugueses na corte de Castela,
tendência predominante até finais da primeira dinastia. (Com efeito, se incluirmos
no grupo D. Mecia Lopes de Haro, mulher de Sancho II, também castelhana apesar
de não ser infanta, só os reis Dinis e Fernando não buscaram mulher em Castela,
o primeiro casando-se em Aragão e o segundo optando pelo casamento
estrategicamente doméstico com Leonor Teles, uma portuguesa, sui generis, dada a sua vasta, antiga
e influente parentela castelhana).
À luz do pouco que hoje se sabe sobre a época da sua vida anterior ao matrimónio
com o infante português, a relevância de Urraca
para a história de Portugal principiou apenas em 1208 (ou inícios de 1209), época provável desse
casamento, sem que haja igualmente vestígio documental do mesmo. Esta
importância reforçar-se-ia plenamente em 1211,
ao tornar-se rainha após a ascensão do primogénito de Sancho I e D. Dulce ao trono
lusitano, como Afonso II.
Esta é a biografia da rainha e não do rei seu marido, aliás
recentemente traçada por Hermínia Vilar. Infanta castelhana,
esforçar-me-ei por escrevê-la sob o ponto de vista de Castela, pelo menos até 1208, e, seguidamente, numa perspectiva
que não privilegie apenas os pontos de vista portugueses. Parcas são as fontes
que fornecem dados sobre si enquanto infanta. Depois, como rainha, grande parte
da informação disponível diz respeito ao seu aparecimento no exercício da função
real, dando-a ao lado de Afonso na subscrição de documentos
régios. Os relatos narrativos mais antigos, entre os quais as crónicas
anteriores a Fernão Lopes, em especial a actualmente denominada Crónica de Portugal de 1419, não só a
ignoram quase por completo como também dedicam atenção insuficiente à pessoa e
reinado do rei seu marido.
O primeiro historiador a desenvolver trabalho empenhado e
quantitativamente significativo para uma biografia de Afonso II foi o cronista
alcobacense do século XVII frei António Brandão, no âmbito do seu
contributo para os trabalhos historiográficos desenvolvidos no âmbito da Monarquia Lusitana. Como Brandão bem
reparou o reinado de Afonso II é muito insuficientemente
tratado pela historiografia antiga e quase inteiramente preenchido com episódios
associados à vinda para Portugal das relíquias dos Mártires de Marrocos e à conquista de Alcácer do Sal, na qual o rei
nem sequer participou». In As Primeiras Rainhas, Maria Alegria
Fernandes Marques, Mafalda de Mouriana, 1133?-1158, Círculo de Leitores, 2012,
ISBN 978-972-42-4703-8.
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