quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Embaixador João Pequito. Colecção Beneméritos SCML. Ana Gomes. «A curiosidade de mergulhar na efervescência da vida, reservada apenas aos homens livres, também lhe decifra a reputação que soube conquistar de charmeur-des-femmes, mas, acima de tudo, desvenda-o como leal e cumpridor do código de camaradagem»

Faculdade de Direito da U. de Lisboa
jdact

Introdução
«(…) À firmeza indomável do carácter somava uma sôfrega curiosidade que o explica como leitor compulsivo de jornais, como amante das artes em geral e da literatura em particular, ou ainda como apreciador dos prazeres da mesa, dedicação ao paladar que lhe fazia merecer o título de gourmet. A curiosidade de mergulhar na efervescência da vida, reservada apenas aos homens livres, também lhe decifra a reputação que soube conquistar de charmeur-des-femmes, mas, acima de tudo, desvenda-o como amigo praticante, leal e cumpridor do código de camaradagem, viciado nas tertúlias que tinha a competência de saber manter sempre estimulantes.
Apesar de ter crescido filho único, não teve essa condição até à adolescência, idade em que um acidente de viação lhe roubou o irmão mais velho, assim abruptamente sonegado a um futuro promissor. Uma morte que carregou discretamente por toda a vida adulta, persistentemente guardada na reserva de um passado que não denunciava nos tempos e espaços de convívio. Mas que inevitavelmente marcou a sua compreensão da fragilidade da vida que se apaga sem aviso, obrigando-o a olhar a existência como algo a ser desfrutado com prazer, paixão e voracidade. Nem o anúncio de um cancro que o ameaçava nos últimos anos, e que viria a ser o rastilho do seu óbito, o desmobilizou na sua cruzada de optimismo. Recebeu a notícia da doença com preocupação mas não esmoreceu nos seus propósitos: os de viver a vida e preparar a morte. Detentor de uma fortuna considerável, em parte herdada da família, mas que soube multiplicar exponencialmente ao longo dos anos, a redacção das suas derradeiras vontades era sentida como uma missão a cumprir. O destino a dar aos seus bens foi alvo de prolongada meditação e constante transformação.
Se João Pequito tinha como imutável a determinação de canalizar a sua riqueza para os outros, tendo como intermediária uma instituição com intervenção social, o dilema era escolher a eleita. A principal inquietação do antigo embaixador era a de que o seu espólio fosse debelado por administrações menos empenhadas que desvirtuassem a sua dádiva. Como tal, acompanhava com fervorosa atenção as notícias que circulavam sobre as entidades que olhava como potenciais candidatas a herdeiras. Qualquer informação depreciativa era motivo para novas inquirições e consequente alteração da decisão testamentária.
No início de 2002, cerca de ano e meio antes da data da sua morte, redige as finais intenções nas quais a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa emerge como herdeira da sua vasta riqueza e depositária da sua exigente confiança. À secular instituição da capital não impôs uma finalidade concreta de aplicação dos bens, num gesto de reconhecimento da missão de boas causas que a Misericórdia praticava. Elegeu ainda o combate ao cancro como beneficiário da sua fortuna, ao deixar ao Imperial Cancer Research, prestigiada entidade de investigação na área da oncologia com sede no Reino Unido, uma fatia substancial dos valores financeiros que acumulara. Não foram ainda esquecidos alguns familiares, o advogado e amigo Paulo Ennes, a governanta que o serviu ao longo de quase duas décadas em Gáfete ou ainda a Junta de Freguesia desta localidade alentejana, todos contemplados com legados em bens ou quantias monetárias.
Para lá das dádivas que podem ser inventariadas, o outrora diplomata deixou uma herança que vive na memória dos que o conheceram. E que se revela num mesmo sorriso, sempre igual nos diferentes rostos daqueles que fizeram parte do seu círculo de amigos. Uma expressão que nasce invariavelmente à mera invocação do seu nome. Nela se lê um valioso espólio de amizade. Uma promessa de generosa descoberta. Uma crónica de liberdade. Um elogio à vida vivida de João Pequito, benemérito da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa». In Ana Gomes, Embaixador João Pequito, Colecção Beneméritos SCML, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, 2011, ISBN 978-972-8761-90-5.

A amizade de Armando Mafaldo
Cortesia da SCML/JDACT