Introdução
«(…) À firmeza indomável do carácter somava uma sôfrega curiosidade que
o explica como leitor compulsivo de jornais, como amante das artes em geral e
da literatura em particular, ou ainda como apreciador dos prazeres da mesa,
dedicação ao paladar que lhe fazia merecer o título de gourmet. A curiosidade de mergulhar na efervescência da vida,
reservada apenas aos homens livres, também lhe decifra a reputação que soube
conquistar de charmeur-des-femmes,
mas, acima de tudo, desvenda-o como amigo praticante, leal e cumpridor do código
de camaradagem, viciado nas tertúlias que tinha a competência de saber manter
sempre estimulantes.
Apesar de ter crescido filho único, não teve essa condição até à adolescência,
idade em que um acidente de viação lhe roubou o irmão mais velho, assim abruptamente
sonegado a um futuro promissor. Uma morte que carregou discretamente por toda a
vida adulta, persistentemente guardada na reserva de um passado que não
denunciava nos tempos e espaços de convívio. Mas que inevitavelmente marcou a
sua compreensão da fragilidade da vida que se apaga sem aviso, obrigando-o a
olhar a existência como algo a ser desfrutado com prazer, paixão e voracidade. Nem
o anúncio de um cancro que o ameaçava nos últimos anos, e que viria a ser o
rastilho do seu óbito, o desmobilizou na sua cruzada de optimismo. Recebeu a
notícia da doença com preocupação mas não esmoreceu nos seus propósitos: os de
viver a vida e preparar a morte. Detentor de uma fortuna considerável, em parte
herdada da família, mas que soube multiplicar exponencialmente ao longo dos
anos, a redacção das suas derradeiras vontades era sentida como uma missão a cumprir.
O destino a dar aos seus bens foi alvo de prolongada meditação e constante
transformação.
Se João Pequito tinha
como imutável a determinação de canalizar a sua riqueza para os outros, tendo
como intermediária uma instituição com intervenção social, o dilema era
escolher a eleita. A principal inquietação do antigo embaixador era a de que o
seu espólio fosse debelado por administrações menos empenhadas que
desvirtuassem a sua dádiva. Como tal, acompanhava com fervorosa atenção as
notícias que circulavam sobre as entidades que olhava como potenciais
candidatas a herdeiras. Qualquer informação depreciativa era motivo para novas
inquirições e consequente alteração da decisão testamentária.
No início de 2002, cerca de ano e meio antes da data da sua morte,
redige as finais intenções nas quais a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
emerge como herdeira da sua vasta riqueza e depositária da sua exigente
confiança. À secular instituição da capital não impôs uma finalidade concreta
de aplicação dos bens, num gesto de reconhecimento da missão de boas causas que
a Misericórdia praticava. Elegeu ainda o combate ao cancro como beneficiário da
sua fortuna, ao deixar ao Imperial Cancer Research, prestigiada entidade de
investigação na área da oncologia com sede no Reino Unido, uma fatia
substancial dos valores financeiros que acumulara. Não foram ainda esquecidos
alguns familiares, o advogado e amigo Paulo Ennes, a governanta que o serviu ao
longo de quase duas décadas em Gáfete ou ainda a Junta de Freguesia desta
localidade alentejana, todos contemplados com legados em bens ou quantias monetárias.
Para lá das dádivas que podem ser inventariadas, o outrora diplomata
deixou uma herança que vive na memória dos que o conheceram. E que se revela
num mesmo sorriso, sempre igual nos diferentes rostos daqueles que fizeram
parte do seu círculo de amigos. Uma expressão que nasce invariavelmente à mera invocação
do seu nome. Nela se lê um valioso espólio de amizade. Uma promessa de generosa
descoberta. Uma crónica de liberdade. Um elogio à vida vivida de João Pequito,
benemérito da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa». In Ana Gomes, Embaixador João
Pequito, Colecção Beneméritos SCML, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,
Lisboa, 2011, ISBN 978-972-8761-90-5.
A amizade de Armando Mafaldo
Cortesia da SCML/JDACT