sábado, 10 de agosto de 2013

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «Em Janeiro de 1440, a rainha Leonor escreveu aos irmãos queixando-se de como por força, os seus cunhados lhe tinham retirado a regência e a tutoria dos filhos e solicitava-lhes que os amedrontassem…»

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«(…) O afastamento do valido favoreceu o aumento do poder dos infantes de Aragão, mas isso não os levaria a empreender acções de força para defender a sua irmã em Portugal. O chefe indiscutível da família, o rei Alfonso V de Aragão, irmão mais velho dos infantes, ocupado então na conquista de Nápoles, não estava de acordo com a intervenção militar dos seus irmãos em terras lusas.
Nessa altura, enviou uma carta ao infante Pedro e aos seus irmãos, na qual anunciava a chegada ao reino de um enviado seu, pertencente à linhagem de Olivares. O rei aragonês pedia que o ouvissem como se da minha própria pessoa se tratasse. Esta personagem, que não conseguiria serenar os ânimos entre os cunhados em litígio, converter-se-ia muitos anos depois em guarda da rainha Joana em Castela. Embora já não exercesse a regência, D. Leonor ainda contava com o apoio de vários nobres portugueses importantes que tinham ocupado destacados cargos durante o reinado do seu marido, cujas filhas e sobrinhas fariam parte, anos mais tarde, do grupo de donzelas que acompanharia a rainha D. Joana a Castela. Por outro lado, os cunhados de Leonor temiam que uma rainha estrangeira, ainda para mais castelhana, pudesse ser controlada por uma oligarquia de ambiciosos magnatas, como nesse momento tentavam fazer com o rei de Castela alguns nobres apoiados pelos infantes de Aragão, aproveitando o facto de Álvaro de Luna ter sido afastado da corte.
Assim, a infanta Joana passou os primeiros sete meses de vida sob um clima de suspeitas e intrigas de corte no qual também participaram servidores da casa da sua mãe, alguns dos quais fariam parte da sua própria casa em Castela. Em finais de 1439, o infante Pedro conseguiu que as Cortes de Lisboa lhe entregassem formalmente o cargo de regente. Antes do encerramento das sessões, um procurador proferiu um discurso contra a educação de Afonso V continuar nas mãos de Leonor. Considerava que isso era muito prejudicial porque o tornaria débil e efeminado: Que para cualquer homen privao é aleijado sobre todos, quanto mais para Rei. O discurso foi tão eficaz que, no final da sessão, ficou determinado não apenas que o rei deixasse de estar sob a tutela da rainha e fosse entregue a Pedro, como também que se fizesse o mesmo com o seu irmão, o infante Fernando e futuro duque de Viseu.
Um dia depois de as Cortes retirarem à rainha a tutoria dos seus filhos varões, segundo uma versão tradicional, passada a meia noite, Leonor levantou os filhos da cama, abraçou-os e, com lágrimas nos olhos, despediu-se deles. A seguir, viajou com as filhas para Sintra, onde se sentia mais segura, já que, para além de ser domínio seu, confiava muito nalguns homens que ali se encontravam ao seu serviço. Entre eles, o seu almoxarife, um castelhano pertencente à casa de Mendoza, linhagem que seria uma das mais fortes aliadas da rainha Joana em Castela. Em Janeiro de 1440, a rainha Leonor escreveu aos irmãos queixando-se de como por força, os seus cunhados lhe tinham retirado a regência e a tutoria dos filhos e solicitava-lhes que os amedrontassem com uma possível invasão. Mas os infantes de Aragão não estavam dispostos a cumprir esse desejo e enviaram um dos seus parentes para falar com os infantes de Portugal.
Como esta missão não teve sucesso, os infantes aragoneses mandaram um deão de Segóvia. Este solicitou aos portugueses, com palavras mansas e honestas, que se concedesse à rainha o acatamento e a reverência que ela merecia. O sacerdote viajou imediatamente para Sintra para falar com Leonor, e aconselhou-lhe que dissimulasse, uma prática aceite pela doutrina cristã quando em política se procurava evitar um mal maior.

NOTA: Em princípio, não ocorria o mesmo com a simulação, ainda que às vezes fosse difícil saber onde estava o limite entre uma e outra. Os clássicos tinham dado como exemplo de estratega com essa conduta a Júlio César, que fizera da simulação uma arte. Em sentido negativo, mencionavam-se os casos de Lívia Drusila, mulher de Augusto, e da rainha Cleópatra. No entanto, nos primeiros séculos do Cristianismo existira alguma margem de aceitação desse comportamento... Santo Ambrósio, que distinguia entre simulatio (engano por actos) e mendacium (engano por palavras), considerou como lícitas certas formas de simulação, ao passo que Santo Agostinho declarou a radical proibição da mentira em todas as suas ordens. Mais tarde, por volta do século XIII, Pedro Lombardo e São Tomás de Aquino chegaram a considerar como menos graves certas formas de mentira, por exemplo as mentiras para bem... Assim, pouco a pouco, acabara por se ir impondo, lo que llevará, al final de la Edad Media, a reconocer como legítima y necesaria, en determinadas circunstancias y contextos, la práctica de la simulación por parte de los gobernantes que tuvieron que conciliar esos postulados con la ética cristiana imperante.

Mas D. Leonor não conseguia fazê-lo sem que se notasse, tendo a relação com os cunhados ficado tão tensa que Alfonso V de Aragão teve de intervir de novo, desde Itália. O Magnânimo mandou redigir nessa ocasião um memorial no qual se pedia que o escândalo acabasse e que se evitassem acções que levariam à perda do reino de Portugal por divisionismo. Esta desautorização da rainha por parte do chefe da sua família chegou a Portugal quando a infanta Joana estava quase a fazer um ano de vida, ao mesmo tempo que, em Castela, documentos públicos denunciavam abertamente, pela primeira vez, um dos temas que anos mais tarde seriam utilizados para difamar o seu futuro marido e que se repercutiriam directamente sobre a sua reputação: os chamados Capítulos de Bonilla, assinados pelos infantes de Aragão, para tentar acabar de uma vez por todas com o condestável Álvaro de Luna.
Estes faziam referência explícita à suposta relação física certo serviço impúdico, que, segundo defendiam, prestara o valido ao rei de Castela, pai do príncipe Enrique, futuro marido de Joana. Príncipe este, também, que começaria a receber a sua dose de calúnias no início do verão seguinte, ao fazer quinze anos, quando abandonou a casa real, fazendo fracassar assim o plano do seu pai, que tinha entregue ao condestável Álvaro o mayordomazgo da casa do príncipe para controlar a sua pessoa. É possível que a difamação tivesse como objectivo ensombrar o seu casamento iminente». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

Cortesia da Esfera dos Livros/JDACT