domingo, 4 de agosto de 2013

O Amor e o Ocidente. Denis de Rougemont. «Se o segredo da crise do casamento é simplesmente a atracção do proibido, donde nos vem esse gosto da infelicidade? Que ideia de amor trairá ele? Que segredo da nossa existência, do nosso espírito, talvez da nossa história?»

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O Mito de Tristão. Triunfo do romance e o que ele esconde
«(…) Mal-casados, decepcionados, revoltados, exaltados ou cínicos, infiéis ou enganados: quer na realidade ou em sonhos, no remorso ou no receio, no prazer da revolta ou na ansiedade da tentação, há pouca gente que se não reconheça pelo menos numa destas categorias. Renúncias, compromissos, rupturas, neurastenias, confusões irritantes e mesquinhas de sonhos, de obrigações, de secretas complacências, metade da infelicidade humana se resume na palavra adultério. Apesar de todas as nossas literaturas, ou talvez por causa delas, justamente, pode parecer por vezes que não se disse ainda nada sobre a realidade dessa infelicidade. E que certas questões das mais ingénuas, neste domínio, tenham sido mais vezes resolvidas do que propostas...
Por exemplo o mal verificado: deve a culpa ser lançada sobre a instituição do casamento ou, pelo contrário, sobre qualquer coisa que a arruine no próprio cerne das nossas ambições? Será, de facto, como muitos o pensam, a chamada concepção cristã do casamento que causa todo o nosso tormento ou, pelo contrário, será uma concepção do amor que não vimos que irá talvez tornar esse laço, desde o início, insuportável?
Verifico que o ocidental ama pelo menos tanto aquilo que destrói como o que assegura a felicidade dos cônjuges. Donde pode vir uma tal contradição? Se o segredo da crise do casamento é simplesmente a atracção do proibido, donde nos vem esse gosto da infelicidade? Que ideia de amor trairá ele? Que segredo da nossa existência, do nosso espírito, talvez da nossa história?

O Mito
Existe um grande mito europeu do adultério: o Romance de Tristão e Isolda. Através da desordem extrema dos nossos costumes, da confusão das morais e dos imoralismos que delas vivem, nos momentos mais puros de um drama, acontece que vemos transparecer, em filigrana, essa forma mítica. Como uma grande imagem simples, como uma espécie de tipo primitivo dos nossos mais complexos tormentos. E assim como, para se livrarem das confusões da nossa língua, os poetas costumam reportar as palavras às suas origens longínquas, ou seja, à coisa ou ao acto que se pensa que elas designavam no início, assim queria eu reportar a esse mito certas confusões dos nossos costumes. Etimologia das paixões, menos decepcionante que a das palavras, já que encontra na nossa existência, e não em qualquer ciência hipotética, sua imediata verificação.
Mas em primeiro lugar, dirá alguém, será exacto que o romance de Tristão é um mito? E, nesse caso, tentar analisá-lo não será destruir o seu encanto? Já não acreditamos que mito seja sinónimo de irrealidade ou de ilusão. Demasiados mitos manifestam entre nós uma força demasiado incontestável. Mas o abuso que se faz da palavra obriga a redefini-la. Poderia dizer-se, duma maneira geral, que o mito é uma história, uma fábula simbólica, simples e impressionante, que resume um número infinito de situações mais ou menos análogas. O mito permite apreender instantaneamente certos tipos de relações constantes e destacá-las da confusão das aparências quotidianas. Num sentido mais restrito, os mitos traduzem as regras de conduta de um grupo social ou religioso. Procedem, portanto, do elemento sagrado à volta do qual se constituiu o grupo (narrativas simbólicas da vida e da morte dos deuses, lendas que explicam os sacrifícios ou a origem dos tabus, etc.). Frequentemente se notou já que um mito não tem autor.
A sua origem tem de ser obscura.  E o seu próprio sentido o é, em parte. Apresenta-se como a expressão anónima de realidades colectivas ou, mais exactamente, comuns. A obra de arte, poema, conto ou romance, distingue-se portanto radicalmente do mito. O seu valor não procede, com efeito, senão do talento do seu criador. O que importa nela é justamente o que não importa no caso do mito: a sua beleza, a sua verosimilhança e todas as suas qualidades de êxito singular (originalidade, habilidade, estilo, etc.).
Mas o carácter mais profundo do mito é o poder que ele tem sobre nós, em geral involuntariamente. O que faz com que uma história, um acontecimento ou mesmo uma personagem se tornem mitos é precisamente esse domínio que exercem sobre nós, não desejado. Uma obra de arte, como tal, não tem a bem dizer um poder de coacção sobre o público. Por bela e poderosa que seja, podemos sempre criticá-la, ou apreciá-la por razões individuais. O mesmo não pode dizer-se do mito: o seu enunciado desarma toda a crítica, reduz ao silêncio a razão, ou, pelo menos, torna-a ineficaz. Ora eu proponho-me encarar o Tristão, não como obra literária, mas como tipo das relações do homem e da mulher num dado grupo histórico: a elite social, a sociedade cortês e imbuída de cavalaria dos séculos XII e XIII. Este grupo, a bem dizer, dissolveu-se há muito tempo. Contudo, as suas leis são ainda as nossas, duma maneira secreta e difusa. Profanadas e renegadas pelos nossos códigos oficiais, tornaram-se tanto mais coercivas quanto já só têm poder sobre os nossos sonhos». In Denis de Rougemont. L’Amour et l’Occident, Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.

Cortesia de Vega/JDACT