O Mito de Tristão. Triunfo do romance e o que ele esconde
«(…) Mal-casados, decepcionados, revoltados, exaltados ou cínicos,
infiéis ou enganados: quer na realidade ou em sonhos, no remorso ou no receio,
no prazer da revolta ou na ansiedade da tentação, há pouca gente que se não
reconheça pelo menos numa destas categorias. Renúncias, compromissos, rupturas,
neurastenias, confusões irritantes e mesquinhas de sonhos, de obrigações, de
secretas complacências, metade da infelicidade humana se resume na palavra adultério.
Apesar de todas as nossas literaturas, ou talvez por causa delas, justamente, pode
parecer por vezes que não se disse ainda nada sobre a realidade dessa
infelicidade. E que certas questões das mais ingénuas, neste domínio, tenham sido mais vezes resolvidas do que
propostas...
Por exemplo o mal verificado: deve a culpa ser lançada sobre a instituição
do casamento ou, pelo contrário, sobre qualquer
coisa que a arruine no próprio cerne
das nossas ambições? Será, de facto, como muitos o pensam, a chamada
concepção cristã do casamento que causa todo o nosso tormento ou, pelo contrário,
será uma concepção do amor que não vimos que irá talvez tornar esse laço, desde
o início, insuportável?
Verifico que o ocidental ama pelo menos tanto aquilo que destrói como o
que assegura a felicidade dos cônjuges. Donde pode vir uma tal contradição? Se o segredo da crise do casamento é simplesmente
a atracção do proibido, donde nos vem esse
gosto da infelicidade? Que ideia de amor
trairá ele? Que segredo da nossa existência, do nosso espírito, talvez da nossa história?
O Mito
Existe um grande mito europeu do adultério: o Romance de Tristão e Isolda. Através da desordem extrema dos nossos
costumes, da confusão das morais e dos imoralismos que delas vivem, nos momentos
mais puros de um drama, acontece que vemos transparecer, em filigrana, essa
forma mítica. Como uma grande imagem simples, como uma espécie de tipo
primitivo dos nossos mais complexos tormentos. E assim como, para se livrarem
das confusões da nossa língua, os poetas costumam reportar as palavras às suas
origens longínquas, ou seja, à coisa ou ao acto que se pensa que elas
designavam no início, assim queria eu reportar a esse mito certas confusões dos
nossos costumes. Etimologia das paixões, menos decepcionante que a das
palavras, já que encontra na nossa existência, e não em qualquer ciência
hipotética, sua imediata verificação.
Mas em primeiro lugar, dirá alguém, será exacto que o romance de Tristão é um mito? E, nesse caso, tentar analisá-lo não será destruir
o seu encanto? Já não
acreditamos que mito seja sinónimo de irrealidade ou de ilusão. Demasiados
mitos manifestam entre nós uma força demasiado incontestável. Mas o abuso que
se faz da palavra obriga a redefini-la. Poderia dizer-se, duma maneira geral,
que o mito é uma história, uma fábula simbólica, simples e impressionante, que
resume um número infinito de situações mais ou menos análogas. O mito permite
apreender instantaneamente certos tipos de relações
constantes e destacá-las da confusão das aparências quotidianas. Num
sentido mais restrito, os mitos traduzem as regras
de conduta de um grupo social ou
religioso. Procedem, portanto, do elemento sagrado à volta do qual se
constituiu o grupo (narrativas simbólicas da vida e da morte dos deuses, lendas
que explicam os sacrifícios ou a origem dos tabus, etc.). Frequentemente se
notou já que um mito não tem autor.
A sua origem tem de ser obscura.
E o seu próprio sentido o é, em parte.
Apresenta-se como a expressão anónima de realidades colectivas ou, mais
exactamente, comuns. A obra de arte, poema, conto ou romance, distingue-se
portanto radicalmente do mito. O seu valor não procede, com efeito, senão do
talento do seu criador. O que importa nela é justamente o que não importa no
caso do mito: a sua beleza, a sua verosimilhança e todas as suas
qualidades de êxito singular (originalidade, habilidade, estilo, etc.).
Mas o carácter mais profundo do mito é o poder que ele tem sobre
nós, em geral involuntariamente.
O que faz com que uma história, um acontecimento ou mesmo uma personagem se
tornem mitos é precisamente esse domínio que exercem sobre nós, não desejado.
Uma obra de arte, como tal, não tem a bem dizer um poder de coacção sobre o público. Por bela e
poderosa que seja, podemos sempre criticá-la, ou apreciá-la por razões
individuais. O mesmo não pode dizer-se do mito: o seu enunciado desarma toda a
crítica, reduz ao silêncio a razão, ou, pelo menos, torna-a ineficaz. Ora eu
proponho-me encarar o Tristão, não
como obra literária, mas como tipo das relações do homem e da mulher num dado grupo
histórico: a elite social, a sociedade cortês e imbuída de cavalaria dos
séculos XII e XIII. Este grupo, a bem dizer, dissolveu-se há muito tempo.
Contudo, as suas leis são ainda as nossas, duma maneira secreta e difusa.
Profanadas e renegadas pelos nossos códigos oficiais, tornaram-se tanto mais
coercivas quanto já só têm poder sobre os nossos sonhos». In Denis de Rougemont. L’Amour et l’Occident,
Librarie Plon, 1938, O Amor e o Ocidente, Vega, Lisboa, 1956.
Cortesia de Vega/JDACT