«A casa grande das quinze janelas branqueja no espinhaço do monte. As
janelas fecharam-se há seis meses, ao mesmo tempo que duas sepulturas se
abriram. A sepultura do Africano, que
chegava ao cemitério quando a filha expirava; e a sepultura de Deolinda, quando
o sino dobrava ainda nos funerais do pai. Ao homem que morreu naquela casa
triste chamavam o Africano. Estou-a
vendo daqui. As vidraças reverberam o sol poente. Eu, há hoje dez anos, vi
abrir os alicerces daquela casa. Lidavam operários a centenares. Entre os
alvenéis estava um sujeito, na pujança dos anos, magro, macilento e tostado
pelo sol da Africa. Disseram-me que era homem muito rico, e viera do cabo do
mundo, e se chamava o Duque por apelido e o Africano
por alcunha.
Avizinhei-me dele, com o semblante risonho de cortesias, para lhe
perguntar como ia, em monte assim agro e ermo, fabricar edifício tão grandemente
cimentado. Respondeu que tinha em Benguela uma filha, com quem andara viajando
na Suíça. E que a sua Deolinda, estanciando nas empinadas serras de S. Gotardo,
lhe dissera que seria feliz se morasse no topo duma montanha, em casa imitante
de outra onde pernoitara, e donde vira levantar-se o sol do seu leito de neve. E
ele, pai extremoso, rico e saudoso da pátria, disse à filha que, por cima da
casinha onde nascera, em um outeiro do Minho, sobranceava um alto monte,
golpeado de regatos que derivavam por entre arvoredos fresquíssimos. E a filha,
cingindo-se-lhe ao pescoço, exclamara: - E
quando vamos?
- Irei fazer a casa no alto do
monte, e depois irás tu, e levaremos para a capela os ossos de tua mãe. E eu
descansarei desta labutação em que pude granjear mais que o preciso ao teu
passadio, visto que preferes, a viver em Paris, uma casa nas serras de Portugal.
E saiu de Benguela, provido de dinheiro para edificar o ostentoso chalet que a filha fantasiara. Ora, os
arquitectos do Minho, como não percebessem a planta do Africano, construíram-lhe um palácio aldeão, espécie de dormitório
monástico, um leviatão de granito zebrado de vidraças enormes e portas
alterosas. Perto dali, na outra lombada do mesmo outeiro, está o antigo solar
torreado dos senhores de Farelães.
E eu, que, naquele tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do
paço senhorial de Ruivães, a decifrar a lenda meio histórica dos Correias de Sá
nos frescos do tecto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do Africano, dizia entre mim. O palácio cavaleiroso que desaba e o palácio
industrial que se levanta. Aquele recorda as manhas épicas do peito ilustre
lusitano, a indústria da lança que atirou da Índia para ali, na ponta
ensanguentada, a pedraria dos reis de Chaul, de Calecute e Mombaça. Ergue-se o
novo palácio para assinalar à posteridade que o peito moderno lusitano é ainda
ilustre e empreendedor, diferençando-se do antigo somente no que vai entre
adaga e azorrague, entre acutilar o índio pela frente ou verberar o etíope
pelas costas.
Mas eu não sabia se aquele homem, tão entranhadamente pai, amealhara os
seus haveres por entre os perigos do cruzeiro. Talvez que não. A riqueza não é
sempre o estipêndio generoso dos homens cruéis. E, em corações afistulados por
peçonha de cobiça, sede execrável que se apaga em lágrimas, não cabe o exaltado
e santíssimo sentimento do amor paternal. Quem chora por um filho não tem olhos
que vejam, enxutos, arrancar escravos dos braços de suas mães. Verdade é que os
práticos destes ultrajes a Jesus, ser divino em que Deus se manifestou no mais
elevado grau da consciência humana, dizem que lá, nas cubatas, não há mães, nem
filhos: há indivíduos bestialmente rebanhados e inconscientes de laços de
família. Se assim é, meu Deus, por que não destes à vossa criatura de epiderme
negra o amor maternal que dulcifica as
meiguices da hiena enroscada nos filhos?»
In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa,
Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.
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