quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Aquela Casa Triste… Camilo Castelo Branco. «Talvez que não. A riqueza não é sempre o estipêndio generoso dos homens cruéis. E, em corações afistulados por peçonha de cobiça…»

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«A casa grande das quinze janelas branqueja no espinhaço do monte. As janelas fecharam-se há seis meses, ao mesmo tempo que duas sepulturas se abriram. A sepultura do Africano, que chegava ao cemitério quando a filha expirava; e a sepultura de Deolinda, quando o sino dobrava ainda nos funerais do pai. Ao homem que morreu naquela casa triste chamavam o Africano. Estou-a vendo daqui. As vidraças reverberam o sol poente. Eu, há hoje dez anos, vi abrir os alicerces daquela casa. Lidavam operários a centenares. Entre os alvenéis estava um sujeito, na pujança dos anos, magro, macilento e tostado pelo sol da Africa. Disseram-me que era homem muito rico, e viera do cabo do mundo, e se chamava o Duque por apelido e o Africano por alcunha.
Avizinhei-me dele, com o semblante risonho de cortesias, para lhe perguntar como ia, em monte assim agro e ermo, fabricar edifício tão grandemente cimentado. Respondeu que tinha em Benguela uma filha, com quem andara viajando na Suíça. E que a sua Deolinda, estanciando nas empinadas serras de S. Gotardo, lhe dissera que seria feliz se morasse no topo duma montanha, em casa imitante de outra onde pernoitara, e donde vira levantar-se o sol do seu leito de neve. E ele, pai extremoso, rico e saudoso da pátria, disse à filha que, por cima da casinha onde nascera, em um outeiro do Minho, sobranceava um alto monte, golpeado de regatos que derivavam por entre arvoredos fresquíssimos. E a filha, cingindo-se-lhe ao pescoço, exclamara: - E quando vamos?
 - Irei fazer a casa no alto do monte, e depois irás tu, e levaremos para a capela os ossos de tua mãe. E eu descansarei desta labutação em que pude granjear mais que o preciso ao teu passadio, visto que preferes, a viver em Paris, uma casa nas serras de Portugal. E saiu de Benguela, provido de dinheiro para edificar o ostentoso chalet que a filha fantasiara. Ora, os arquitectos do Minho, como não percebessem a planta do Africano, construíram-lhe um palácio aldeão, espécie de dormitório monástico, um leviatão de granito zebrado de vidraças enormes e portas alterosas. Perto dali, na outra lombada do mesmo outeiro, está o antigo solar torreado dos senhores de Farelães.
E eu, que, naquele tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do paço senhorial de Ruivães, a decifrar a lenda meio histórica dos Correias de Sá nos frescos do tecto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do Africano, dizia entre mim. O palácio cavaleiroso que desaba e o palácio industrial que se levanta. Aquele recorda as manhas épicas do peito ilustre lusitano, a indústria da lança que atirou da Índia para ali, na ponta ensanguentada, a pedraria dos reis de Chaul, de Calecute e Mombaça. Ergue-se o novo palácio para assinalar à posteridade que o peito moderno lusitano é ainda ilustre e empreendedor, diferençando-se do antigo somente no que vai entre adaga e azorrague, entre acutilar o índio pela frente ou verberar o etíope pelas costas.
Mas eu não sabia se aquele homem, tão entranhadamente pai, amealhara os seus haveres por entre os perigos do cruzeiro. Talvez que não. A riqueza não é sempre o estipêndio generoso dos homens cruéis. E, em corações afistulados por peçonha de cobiça, sede execrável que se apaga em lágrimas, não cabe o exaltado e santíssimo sentimento do amor paternal. Quem chora por um filho não tem olhos que vejam, enxutos, arrancar escravos dos braços de suas mães. Verdade é que os práticos destes ultrajes a Jesus, ser divino em que Deus se manifestou no mais elevado grau da consciência humana, dizem que lá, nas cubatas, não há mães, nem filhos: há indivíduos bestialmente rebanhados e inconscientes de laços de família. Se assim é, meu Deus, por que não destes à vossa criatura de epiderme negra o amor maternal que dulcifica as meiguices da hiena enroscada nos filhos?»

In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa, Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.

Cortesia da LCE/JDACT