Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra, coisa
é o povo.
«(…) Se, quando me acordavam, eu me lembrasse do prazer do matabicho
assim de manhãzinha, eu acordava bem-disposto. Matabichar cedo em Luanda, cuia! Há assim um fresquinho quase
frio que dá vontade de beber leite com café e ficar à espera do cheiro da
manhã. Às vezes mesmo com os meus pais na mesa, nós fazíamos um silêncio. Se
calhar estávamos mesmo a cheirar a manhã, não sei, não sei.
O camarada António tinha chaves de casa, mas às vezes eu estava na
varanda e via-lhe ali sentado na zona verde. A minha mãe já tinha lhe dito para
ele não vir tão cedo, mas parece que os mais velhos têm pouco sono às vezes.
Então ele ficava ali nos bancos, só assim sentado. Quando ouvisse movimentos aqui
em casa, ele aparecia devagar. - Bom dia, menino. - Bom dia, camarada António eu esperava que ele fechasse o portão. -
Hoje também estavas aí muito cedo, António... - É... eu fico mesmo aí sentado,
menino… - sorrindo, ele. - A senhora já acordou?
O camarada António fazia aquela pergunta, mas eu não sei porquê. Ele
sabia que a minha mãe era sempre a primeira a acordar. Se calhar não era para eu
responder, mas eu só ia perceber isso muito mais tarde. - Hoje vieste de candongueiro, António? - Não, menino, vim a pé mesmo;
esta hora está fresco… - Desde o Golf ate aqui, António? - eu, em espanto. -
Vinte minuto, menino... Vinte minuto...
Mas não era verdade. O camarada António gostava de dizer vinte minuto pra tudo. A água já estava
a ferver há vinte minuto, a mãe tinha saído há vinte minuto e faltava sempre
vinte minuto para o almoço estar pronto. Fiquei na varanda. No jardim havia
umas lesmas que deviam ser mais velhas porque sempre acordavam cedo. Eram
muitas. Depois do matabicho, ficar assim na varanda com aquele fresquinho, ver
as lesmas irem não sei aonde, aquilo dava-me sono outra vez. Adormeci mesmo.
Sempre era o sol que me acordava. Era muito impossível na minha varanda
descobrir o sítio para onde ele ia a seguir. A perna estava quente e dormente,
eu tinha uma comichão muito chata. Cocei.
Depois ouvi a voz do António, vinda lá da cozinha. - Tava a chamar, camarada António? - cheguei à cozinha. - Telefonou a tia
do menino, menino... - Qual tia, António? - A tia de Portugal. - Ó António, poças...
e nem me acordaste... Eu queria falar com ela. - Ela queria falar com o pai,
menino sorrindo. - Então..., queria falar com o pai mas falava comigo... E ela
disse o quê? - Não disse, menino... Falou só era pra dizer no pai que ela tinha
ligado, parece vai ligar mais, hora do almoço... - Mas telefonou a que horas,
António, eu não ouvi o telefone... – Nem faz, vinte minuto, menino...
O cheiro da cozinha, o apito da panela, a movimentação do camarada
António, tudo me dizia que deviam ser onze horas. Ainda não tinha feito as tarefas
de Matemática e Química, e devíamos almoçar ao meio-dia e meia. Decidi que já
não ia tomar banho, até porque havia Educação Física à tarde, assim o banho
ficava já para a noitinha.
Subi, fui fazer os deveres,
como dizíamos antigamente. A minha mãe tinha-me ensinado que primeiro estuda-se
a matéria e depois é que se faz a tarefa, mas quando eu não tinha tempo ia ver
a matéria e resolvia isso logo. O Cláudio, o Bruno e principalmente o Murtala
sempre faziam assim os deveres, e diziam que funcionava. Já a Petra todos os
dias estudava, metia raiva aquela miúda, no dia seguinte já sabia a matéria toda,
nós quando tínhamos uma dúvida durante uma prova sempre lhe perguntávamos.
A minha mãe chegou. Primeiro vai à cozinha ver se o almoço está bem
encaminhado, depois é que vai pendurar as chaves no chaveiro, vai subir,
perguntar-me se tenho os deveres feitos e vai tomar banho. Só se eu estiver
enganado, mas costuma ser assim. - Tu e
que falaste com a tia Dada? - deu-me um beijinho, foi para a casa de banho,
abriu a torneira. (Eu sabia!) - Não, eu
tava, a fazer os deveres... Foi o camarada António. - Mas o António disse que
tu estavas na varanda. - Sim, estava na varanda a fazer os deveres. - Mas já
vos disse que quando o telefone toca, vocês atendem, não fazem o camarada
António vir da cozinha para, atender o telefone... - era outro tom de voz. -
Mas ele veio tão rápido, mãe, que eu nem tive tempo. Ela entrou no banho. O
barulho da água interrompeu a conversa. Ainda
bem».
In Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Editorial Caminho, Lisboa, 2003, ISBN
972-21-1524-3.
Cortesia de Caminho/JDACT