O Mar e o Marão
«É possível, a partir duma leitura atenta das últimas páginas do livro O Encoberto de Sampaio Bruno,
perceber a existência dum ritmo binário, espécie de estrutura elementar das
coisas, que tanto abraça a história de Portugal como a própria história do
mundo. Entre nós, como aliás em tudo aquilo que à história dos homens possa
dizer respeito, um tal sentido binário estaria sobretudo circunscrito à
diferença entre Passado e Futuro,
constituindo cada um deles uma unidade parcelar de totalidade mais vasta. Essa
totalidade seria então constituída pela justaposição contrapolar do Passado e
do Futuro, que teriam ambos um valor semelhante na história humana àquele que
tem o binómio Luz e Sombra na
história do mundo ou do cosmos. Pode-se pensar que a história dos homens se
rege, no seu plano específico, pelos mesmos valores que presidem ao
desenvolvimento da história das coisas cósmicas. A luz equivale ao passado,
enquanto que a sombra equivale ao futuro.
Não creio ser difícil perceber, até porque Bruno dá indicações nesse
sentido, que o Mar, entendido este
num sentido emblemático de que ainda lograremos revelar alguns pormenores,
constituiu o fundamento mesmo daquilo que podemos chamar o primeiro ciclo da nossa
história, o ciclo do passado a que, na história mais vasta do mundo, corresponde
o ciclo da luz. É um ciclo bem definido e delimitado, pelo menos nos seus
valores constitutivos, quando não nas datas, que se nos afiguram duma perfeição
enigmática, e que tem no centro do seu corpo os Descobrimentos. As descobertas físicas
são o coração do primeiro ciclo da nossa história. São elas que dão sentido e
valor ao Mar, entendido como entidade abstracta, e são elas que definem todo um
ciclo bem conhecido da história entre nós.
Convém, antes de mais, até para se poder perceber a importância dos
futuros desenvolvimentos a que estaremos sujeitos como país no trânsito para o
futuro, saber que este ciclo particular da história entre nós, a que damos o
nome de Mar, se confunde com a
própria história geral da humanidade de então. E identicamente se confunde
porque, como se sabe, toda a humanidade de então passou a estar, nos seus
acontecimentos gerais, dependente dos acontecimentos particulares então desenvolvidos
no mundo pelos portugueses.
Não é só em Camões que
encontramos a ideia do reino lusitano ser cume
da cabeça / De Europa toda (Canto III), é já na própria cartografia dos séculos
XIV e XV, desenvolvida depois no século XVI com o aperfeiçoamento quer das técnicas
quer dos conhecimentos, que deparamos com uma situação perfeitamente central,
ou melhor frontal, de Portugal. A cartografia
da altura, que não tinha abdicado em definitivo das preocupações metafísicas na
representação da Terra, ao modo de Santo
Isidoro de Sevilha ou de Cosmas Indicopleustes, continuava a animizar
as formas da terra então conhecidas (sobretudo a Ásia, a África e a Europa que
constituíam um corpo único). A fronte irradiadora, que tinha simultaneamente
alguma coisa de boca devoradora, do corpo animal do mundo era colocada pela cartografia
na parte ocidental da Península Ibérica. Os pés apareciam em África e em
Malaca. O rabo em Cipango. Veja-se, como exemplo paradigmático desta
representação, a carta de Martin Waldseemüller, integrada em 1513 numa reedição
da Geographia de Ptolomeu, A carta inspira-se
em modelos portugueses.
Ao percorrerem fisicamente a Terra, e acabando mesmo em 1519 por abraçá-la
num único abraço os portugueses tenderam para uma unidade física da Terra,
uma aproximação dos povos e das culturas, que constituirão sempre a dimensão mundial das suas descobertas. Uma tal
unidade física da Terra, que teve talvez a sua expressão representativa nas várias
esferas armiladas que fomos grafando e esculpindo, acabou, tanto aos olhos dos
portugueses como dos restantes povos, por centrar em Portugal em determinado
momento os destinos mesmos da humanidade. A identidade dos dois planos, o português e o humano,
realiza-se a partir do momento em que o primeiro pôde ser tomado como a parte
representativa do todo porque a unidade das coisas, neste caso a unidade física
das coisas, constitui o degrau decisivo da existência». In António Cândido Franco, O Mar
e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989, IADE, Lisboa.
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