Bastardos do Sol
«A sombra das chamas, como um ninho de víboras, floria de remorso, mas que remorso? E de saudade
absurda a alvura em fuga da parede caiada, apoiada de grumos que aquele luzeiro
avolumava e que sempre eram, um por um, na hora da solidão, referências aos
segredos antigos. Uma pequena fogueira num cinzeiro de louça. Apenas um papel a
mirrar, já negro, encarquilhado, e sangrando ainda, pelo canto que sobrava, aquele
resplendor de uma última e cínica despedida. Não iria estalar o cinzeiro? Os dedos brancos, mas já
envelhecidos, pela barrela e pelas frieiras, pegaram, com jeito, na folha quase
consumida, voltaram para cima o clarão ameaçador, que logo minguou. Em breve,
soltando-se da mão fanada, que prudentemente se retirava, o resto da carta caiu
de novo, com o seu rasto de lume a extinguir-se, fantasma já dominado, na
concha de louça. Ficou só um castelo de cinza crepitando mansamente, num silêncio
de redoma. Como era doloroso ver arder uma carta: era como se ardesse também alguma
coisa; ainda alguma coisa, de quem a mandara! Numa extremidade do papel
carbonizado, tenazmente, ou já só ilusoriamente, viva, continuava a afirmar-se,
airosa e egoísta, uma assinatura que parecia sorrir daquele gratuito sacrifício:
Delfino!
- Então esse jantar é para hoje ou para amanhã? - reclamou a
voz da exigência, na saleta, ao lado, que agora fedia e já nem merecia o nome de
saleta, desde que haviam chegado aqueles queijos de ovelha que lhes oferecera o
compadre Luís Chamorro e que o Arménio para ali empilhara, ao lado de um cesto
com pimentões, prosseguindo a sua quase vindicativa destruição da casa, no que ainda
lhe sobejasse de graça inútil, de civilidade, de continuação do passado. Contudo,
era ele quem nunca se esquecia, no Dia de Finados, de ir levar flores aos
mortos. Mas queria certamente humilhá-la, transformando-lhe todas as divisões
numa enorme despensa, substituindo o cheiro cru das cebolas e dos queijos
frescos a esse inefável, escarnecível embora, mas orgulhoso, odor de poesia e
recordação que ela reivindicava só para si.
Os dedos precocemente cansados esfarelavam a lâmina de cinza, que fora
uma carta de amor, e depois, morosos, como penitentes, buscaram o lenço,
entalado sob o cinto do vestido de xadrez, que ficou ao de leve mascarrado. Só
então é que Irisalva se ergueu e atravessou esguia, o corredor, levando
na mão o candeeiro de petróleo e sem um olhar para a saleta, onde o irmão
fazia, as contas do dia, maciçamente curvado sobre a velha escrivaninha. Logo
voltou, porém, da cozinha, sempre silenciosa, e entrou enfim, para pôr a mesa, naquele
aposento do ódio, naquela geleira do ódio insubstituível que os roía e os unia.
Tão-pouco ele disse uma palavra, absorto na sua coluna de pagamentos. Nunca se
enganava num algarismo. Nem tolerava os erros alheios. Tão honesto quanto brutal,
dele ressumavam sempre certezas, violentas certezas, incontestáveis certezas, e
envolvia-o, acompanhava-o, mesmo nos lances menos heróicos, mais caricatos, da
existência, um manto invisível, mas opressivo, de grandeza, de uma primitiva e
agressiva grandeza que Irisalva reconhecia e abominava. Abominava-o em
tudo, na voz intimativa e forte, na quadratura taurina do busto, no olhar de
uma obscura e arrogante vitalidade, até na grenha silvestre que lhe nascia
quase grotescamente a meio da testa. E sabia, entretanto, visceralmente que o
amava no próprio ódio, que fora o crime a alavanca sagrada desse horrível amor,
nesses mesmos predicados físicos e morais que tanto a enojavam». In Urbano
Tavares Rodrigues, Bastardos do Sol, Livraria Bertrand, Círculo de Leitores,
1974.
Cortesia da Bertrand/JDACT