José do Telhado Agora
«(…) Ditosos derivaram os primeiros anos deste suspirado enlace. José
do Telhado era querido dos seus vizinhos, porque aos ricos nada pedia,
e aos pobres dava os sobejos da sua renda e do seu trabalho de castrador. O seu
primeiro filho era o complemento daquela conjugal felicidade; e os outros que
depois vieram a mais a aumentavam, porque sobrava o pão e o agasalho para
todos. Quem não invejaria José do Telhado há dezoito anos? Quantos, benquistos hoje do mundo e afortunados,
olhariam então cobiçosos para o tecto
do ditoso casal de Caíde?
José do Telhado, em 1845,
levado da sua generosa intrepidez, defendeu, na feira de Penafiel, um vizinho
perseguido por muitos. Foi luta grandemente desigual, de onde ele saiu
moribundo, arrancado de entre os muitos que caíram em roda dele. Venceu a
morte, ladeado dos carinhos da esposa, que, com suas próprias mãos, lhe curava
os ferimentos, e robustecia o espírito quebrantado pelo desaire.
Seguiu-se a revolução popular
de 1846. A população carecia
de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres
a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase o
forçaram a comandá-los. O chefe, conhecendo-se obscuro demais para aceitar a
responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus
amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que
confluíam para a cidade heróica.
Entrou José do Telhado ao serviço da Junta na arma de cavalaria.
Comprou cavalo, e fardou-se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu
dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta
para valer aos que de sua casa nada tinham. José Teixeira empenhou-se
grandemente para satisfazer o que em parte era capricho, e em parte largueza de
alma.
Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao
visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha,
estão escritas na condecoração da Torre-e-Espada, que o general por sua própria
mão lhe apresilhou na farda. Fora o caso que do cômoro de uma ribanceira alguns
soldados do regimento traidor apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça
das descargas. José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas
do cavalo do general, e obriga-o a saltar um valado. Mal deram o salto, passaram
as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos. A este tempo três soldados
de cavalaria avançavam desapoderados sobre o visconde de Sá. José
Teixeira embarga-lhes a arremetida, e desarma o primeiro de um golpe,
fere mortalmente o segundo e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a
vida pelas costas. Quando voltou da fracção já o general tinha suspensa a
medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.
Feito o convénio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de
sargento e foi para casa, onde o esperava a saudosa e atribulada mulher com os
seus cinco filhos. Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores
perseguiam-no, e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam
disfarces para o afligirem. Joaquim do Telhado, irmão de José, mantinha nessa
época as tradições de família, saindo à estrada, com um séquito de populares
foragidos à perseguição política. Mal pude estudar o espírito de José
Teixeira na penosa passagem da vida honrada para a malta de seu irmão.
Averiguei artificialmente aquela frase de sua alma; mas ele teimava nesta
resposta: - Eu via-me quase pobre, e perseguido pelos credores e pelas
autoridades». In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa,
Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.
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