sábado, 31 de agosto de 2013

José do Telhado. Aquela Casa Triste… Camilo Castelo Branco. «… a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no, e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o afligirem. … Eu via-me quase pobre, e perseguido pelos credores e pelas autoridades»

jdact

José do Telhado Agora
«(…) Ditosos derivaram os primeiros anos deste suspirado enlace. José do Telhado era querido dos seus vizinhos, porque aos ricos nada pedia, e aos pobres dava os sobejos da sua renda e do seu trabalho de castrador. O seu primeiro filho era o complemento daquela conjugal felicidade; e os outros que depois vieram a mais a aumentavam, porque sobrava o pão e o agasalho para todos. Quem não invejaria José do Telhado há dezoito anos? Quantos, benquistos hoje do mundo e afortunados, olhariam então cobiçosos para o tecto do ditoso casal de Caíde?
José do Telhado, em 1845, levado da sua generosa intrepidez, defendeu, na feira de Penafiel, um vizinho perseguido por muitos. Foi luta grandemente desigual, de onde ele saiu moribundo, arrancado de entre os muitos que caíram em roda dele. Venceu a morte, ladeado dos carinhos da esposa, que, com suas próprias mãos, lhe curava os ferimentos, e robustecia o espírito quebrantado pelo desaire.
Seguiu-se a revolução popular de 1846. A população carecia de um chefe, e rejeitava os ilustres caudilhos, que saíram de suas casas nobres a especular com o braço do povo. Conclamaram à uma José Teixeira, e quase o forçaram a comandá-los. O chefe, conhecendo-se obscuro demais para aceitar a responsabilidade e prestígio de cabecilha guerrilheiro, convenceu os seus amigos da precisão de se ajuntarem, sob outro chefe, às legiões populares que confluíam para a cidade heróica.
Entrou José do Telhado ao serviço da Junta na arma de cavalaria. Comprou cavalo, e fardou-se à sua custa a todo o primor. Repartia do seu dinheiro com os camaradas carecidos, e recebia as migalhas do cofre da Junta para valer aos que de sua casa nada tinham. José Teixeira empenhou-se grandemente para satisfazer o que em parte era capricho, e em parte largueza de alma.
Acompanhou a expedição a Valpaços, e foi dado como ordenança ao visconde de Sá da Bandeira. As proezas cometidas nessa temerosa e mal sortida batalha, estão escritas na condecoração da Torre-e-Espada, que o general por sua própria mão lhe apresilhou na farda. Fora o caso que do cômoro de uma ribanceira alguns soldados do regimento traidor apontavam as armas ao general, conturbado pela fumaça das descargas. José Teixeira arranca do cavalo a toda a brida, toma as rédeas do cavalo do general, e obriga-o a saltar um valado. Mal deram o salto, passaram as balas poucas polegadas acima da cabeça de ambos. A este tempo três soldados de cavalaria avançavam desapoderados sobre o visconde de Sá. José Teixeira embarga-lhes a arremetida, e desarma o primeiro de um golpe, fere mortalmente o segundo e persegue o terceiro, que fugia, até lhe arrancar a vida pelas costas. Quando voltou da fracção já o general tinha suspensa a medalha, que o valente recebeu com mais delicadeza que entusiasmo de honras.
Feito o convénio de Gramido, José Teixeira arrancou as divisas de sargento e foi para casa, onde o esperava a saudosa e atribulada mulher com os seus cinco filhos. Como se disse, a casa estava onerada de dívidas, os credores perseguiam-no, e as autoridades, avessas à sua política, esquadrinhavam disfarces para o afligirem. Joaquim do Telhado, irmão de José, mantinha nessa época as tradições de família, saindo à estrada, com um séquito de populares foragidos à perseguição política. Mal pude estudar o espírito de José Teixeira na penosa passagem da vida honrada para a malta de seu irmão. Averiguei artificialmente aquela frase de sua alma; mas ele teimava nesta resposta: - Eu via-me quase pobre, e perseguido pelos credores e pelas autoridades». In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa, Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.

Cortesia da LCE/JDACT