Introdução
«Filho de abastados proprietários alentejanos, fez do mundo a sua casa.
Diplomata de carreira, preferia a frontalidade à mera cortesia. Solteiro por
vocação, alimentava assiduamente uma teia de sólidas amizades que prezava como
uma família. Apesar de valorizar a poupança no dia-a-dia, não se privava dos
detalhes que maior satisfação lhe emprestavam: os prazeres sensoriais do
quotidiano, as viagens pelo mundo e o festivo convívio com os amigos,
embrulhado em paladares e conversas animadas. Exuberante no seu insaciável
consumo da vida, mantinha discretos alguns gestos de solidariedade e outras
consensuais qualidades que facilmente lhe granjeariam o elogio dos demais. Mas não
era o reconhecimento público que o movia. Era o gozo de viver cada dia, sempre
fiel a si próprio.
Num permanente equilíbrio entre os extremos onde gostava de morar, João
Eduardo Nunes Oliveira Pequito revela-se como uma figura
complexa, intensa e fascinante. Nos invariavelmente saudosos testemunhos dos
que o conheceram, surge como um bon vivant,
amiúde irreverente e sempre descomprometido. Um genuíno espírito livre, que a
ficção literária certamente encaixaria no perfil do anti-herói: provocador,
excessivo e inconvencional. Mas também generoso, franco e solidário.
Se fosse personagem de uma história imaginada, certo é que desempenharia
o papel de protagonista. Mas, porque a realidade consegue ultrapassar a ficção,
irrefutável é o lugar que ocupa na história da Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa, enquanto um dos seus maiores beneméritos no século XXI. Posição
conquistada ao ter eleito, depois de prolongada ponderação e meticulosa
avaliação, a secular a instituição da capital como a herdeira dos seus
avultados bens, num gesto de generosidade invulgar.
Invulgar é um apelido que assenta como uma luva ao embaixador João Pequito, como faz prova a
narração da recheada viagem que foi a sua vida. Uma jornada que arranca em
Lisboa no ano de 1925, poucos meses antes dos pronunciamentos ocorridos em
várias divisões militares do país, conduzindo à instauração de uma ditadura
militar. Convulsão que pôs fim à I República e abriu caminho ao Estado Novo,
regime político que viu vigorar, com desagrado, até às vésperas de completar meio
século de existência. Se cresceu sob o signo do sistema liderado com mão de
ferro por Salazar, já não envelheceu debaixo dos seus auspícios, recebendo com
entusiasmo a democracia para a qual a revolução do 25 de Abril de 1974 abriu
portas em Portugal.
Desde a infância vestiu o papel de viajante, para o qual demonstrou ter
verdadeira vocação ao longo da vida adulta, enquanto diplomata de carreira. No
início, era a obrigação filial de seguir a família nas frequentes mudanças de
morada pelo território nacional, fruto das nomeações do pai, magistrado de
profissão, para distintas comarcas judiciais do país. Assim se compreende que João Pequito tenha concluído os
primeiros estudos na Covilhã, seguindo depois para Santarém, cidade onde frequentou
o liceu, para só mais tarde regressar à sua cidade natal, quando ingressa na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Depois, foram as exigências
profissionais enquanto membro do corpo diplomático português, que o fizeram
seguir rumo a destinos como Paris, Hong-Kong, Roma, Rio de Janeiro, Bruxelas ou
Cidade do México, locais onde exerceu funções ao serviço do Ministério dos
Negócios Estrangeiros (MNE).
Apesar de ser um cidadão do mundo, com genuína natureza cosmopolita,
não esqueceu a genética familiar, com profundas raízes no solo do Alentejo. Por
isso, entre as frequentes deslocações à escala do globo, o diplomata jamais
renunciou ao insistente regresso a Gáfete, pequena freguesia alentejana, de
onde era originário o pai, e na qual a família Pequito residiu durante
prolongadas temporadas. Ostentava mesmo um orgulho salutar no seu ancestral berço
alentejano. Quando confrontado com a franqueza desarmante que o caracterizava,
respondia com recurso ao humor, arte que dominava com mestria: apresentava-se
como uma improvável mistura de diplomata e alentejano, jogando habilmente com
os estereótipos que transformam o diplomata no representante da cerimónia
polida e o alentejano em sinónimo de frontalidade genuína.
Tanto na vida pessoal como na profissional, optou sempre por tomar as
posições que julgou adequadas, indiferente à aprovação ou censura exteriores.
Teve a ousadia de manter-se fiel aos valores que escolheu como seus. Nunca
enveredou em filiações partidárias, mas tinha sólidas concepções sociais e
políticas das quais jamais abdicou. Mesmo quando o cenário político o
desaconselhava. Assim se podem entender gestos profissionais incomuns, como um
pedido de licença ilimitada, graças ao qual se afastou temporariamente da
carreira em 1968, para só regressar depois de 1974. Ou a assumpção, um ano
depois, em pleno vigor do PREC, das funções de presidente da comissão ministerial
de saneamento e reclassificação criada no seio do MNE, devido à qual terá
inevitavelmente conquistado algumas animosidades. Ou mesmo a entrada na
disponibilidade simples em 1984, a seu pedido, deixando precocemente a carreira
diplomática». In Ana Gomes, Embaixador João Pequito, Colecção Beneméritos SCML, Santa
Casa da Misericórdia de Lisboa, Lisboa, 2011, ISBN 978-972-8761-90-5.
A amizade de Armando Mafaldo
Cortesia da SCML/JDACT