O Dodelat-sis
«(…) Teodoro perdeu privilégios, distinções, um gabinete que adorava,
um posto situado no topo das hierarquias, muito maior do que qualquer outro que
alguma vez tivera ou ambicionara, bastante superior aos desejos esperançosos de
seus pais que sempre ansiaram o melhor para ele. Por cima da sua cama, a número
96 da enfermaria do Hospital Civil, há um Cristo metálico pendurado de uma cruz
quebrada. A visão da cruz, apesar de tudo, já não motivou a sua célebre frase: só tenho de agradecer a Deus... Perante
percalços, acidentes, susto s e azares, diante do descobrimento infeliz de que
o Mundo é regido por ditadores tarados fiéis a princípios insondáveis e por
mãos de férreas atitudes e forças ocultas mas indiscutíveis, Teodoro tinha
resvalado de uma fé, ingénua mas sincera, para um acentuado agnosticismo que,
muito depressa, se tornara num ateísmo absoluto, escorado em mil indiferenças e
na crença firme de que mais vale acreditar em si mesmo, por pouco que seja, do
que em projecções espirituais que transcendam quaisquer racionalismos.
Teodoro Anastácio Matos tem razões para estar feliz. Não tem dores. Os
analgésicos, muitos, que tomou, não estão a fazer efeito; as suas dores
esfumaram-se diante da magia da sua tranquilidade retomada. A multidão de
moscas nos tectos e nas paredes que deviam ser brancas, as teias de aranha
pardas e os aracnídeos gordos, as tábuas podres do chão, uma árvore, uma
caneleira natural de Ceilão, vê-se da janela muito doente a falecer com
saudades das regiões tropicais, tudo o faz sentir-se feliz.
Nesse mesmo instante, numa sala recatada da presidência da República,
dois homens debruçam-se sobre o ecrã de um computador: - Apaga-se o ficheiro e
pronto. É como se Teodoro Anastácio Matos nunca tivesse existido... - Dizias tu
que era verde... Pois revelou-se bem maduro... E lixou tudo... - Este não é
dos tais a quem só lhe acontece algo por acaso. -É fundamental que o Presidente
não venha a saber de nada! - E se não apagássemos
apenas o ficheiro? Delete? - DEL!.
Sem o saber, Teodoro Anastácio Matos tem, uma vez mais, razões para
estar feliz. Alguém vai introduzir-se esta noite na enfermaria. Trata-se de um
assassino experiente, implacável, com uma folha de serviços cheia e gloriosa. (O que é que o distingue de um herói?).
Esse assassino irá agarrar numa almofada que colocará sobre o rosto de um homem
adormecido sobre o qual irá disparar duas balas fatais com uma pistola munida
de um silenciador. Trabalho profissional, eficaz, fulminante. Rápido e, até
certo ponto, limpo.
Na manhã seguinte, uma enfermeira dará com o corpo. A mulher vai entrar
em pânico. Vão reunir-se mais enfermeiros à sua volta e médicos e mesmo a
administração do hospital. A polícia será chamada. Indagará. E acabará por encerrar o processo não só por falta
de provas mas principalmente por julgar tratar-se de um crime quase piedoso,
cometido, muito provelmente por iniciativa e pedido do próprio doente, um
moribundo distante de toda a realidade mundana, doente classificado como em
estado terminal, o mesmo é dizer sem
hipóteses de retorno da longa marcha.
A agitação, apesar da gravidade do caso, acabará por dissipar-se num ápice. Um
desastre tremendo, um choque em cadeia numa autoestrada, vem reclamar a
mobilização geral e mesmo a necessidade de disponibilizar algumas das camas.
Uma prática hospitalar muito comum, ritual cumprido com afinco exemplar.
Um pouco alheio a todas estas andanças, Teodoro vê-se de repente a ter
alta. Está feliz. Sai do hospital ignorando rebuliços, o vaivém das
ambulâncias, os gritos de desespero nas urgências. Uma velha que torceu uma
perna, salta à sua frente ao pé coxinho. Teodoro aproveita; ela chegou de táxi.
Teodoro segue nele para a estação de comboios. Tem uma casita na província, com
um terreno fértil. De facto, nunca mais se saberá dele até ganhar o primeiro
prémio da criação de porcos na Feira da Agricultura alguns anos depois. Mas mesmo
então ninguém o associará a acontecimentos porcinos de outra qualquer natureza.
Os prémios irão suceder-se na sua vida; especializar-se em florzitas e mesmo
assim ninguém lhe dará mais protagonismo do que o imediato e sombrio...».
In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio,
2001, ISBN 972-53-0114-5.
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