«(…) Estou por todas. Mas se caçoais comigo, juro à fé de quem sou, e
sou o grande, o absoluto, o senhor entre senhores, que te mando passar em
degolado feito uma espada afiada abaixo dessa tua cabeça de maldito marrano
excomungado. Pois se marrano ainda é suíno, que bem empregues palavras as que
escolheste, pensou Nuno Coelho, aliás Zacuto de origem. Amarrou um lenço
sobre a cara, começou a desdobrar o pivete da mezinha e o Rei a vomitar-se ia
recusando, mas lá se deixou tratar, e Zacuto despiu-lhe os calções e aplicou,
com um pano a resguardar-lhe as mãos, a mistela que trazia, assim mesmo em
directo sobre as varizes, algumas muito roídas e purulentas, e depois meteu-lhe
sobre elas faixas de pano e apressou-se a sair dali, com algumas fingidas
mesuras e despedimentos.
El-Rei ainda tentou retê-lo, ameaçando-o, depois lá o largou e Zacuto
apressou-se a abandonar o palácio, rumo ao seu clandestino novo lugar de
habitação, local escondido que partilhava com a família e outras famílias de
hebreus perseguidos... El-Rei ficou a sós com o cheirete. Foi-se pôr na varanda,
mas nem assim corria ar fresco que aligeirasse a coisa. - Vou ter de aguentar
se é para meu serviço e préstimo. Que esse judeu é um cão maldito, mas não há
dúvida que também é afamado como o melhor do reino em seu mister... Juro que
lhe como a filha depois de o matar, se isto é artimanha dele. Como-a, a piça e
dente, mesmo que seja maldição para quem professa na crença da fê de Cristo ir
às saias e ao que nelas se achar de uma judia...
À janela, el-rei exalava. Era fedor que podia sentir-se em léguas por
redor, e que se sentia muito, pois nesse dia muitos súbditos se interrogaram
que sucesso passaria. Vil cheirete de emplastro malcheiroso em contágio de
reino de odores tão misturados... - Sou um rei na mer.., por assim dizer.
Era sempre com desagrado que o cardeal recebia frei Tomás. E era sempre
por obrigação, sem qualquer estímulo ou alegria, que frei Tomás ia cumprimentar
o cardeal depois de uma das suas, aliás famosas, viagens. Palra o cardeal,
homens de muita cultura, fossem laicos ou eclesiásticos, estavam a meio passo
da perdição. Os soldados de César e o califa de Omar é que tinham razão ao
deitarem fogo à biblioteca de Alexandria. Que se lessem no mundo, e apenas, as
Sagradas Escrituras e o Mundo estaria salvo! De resto, pensava o cardeal, pior
ainda, frei Tomás era agostinho e os agostinhos gostam de pensar por sua própria
cabeça, sendo que na maior parte das vezes o pensamento per si é já um pecado mortal.
Frei Tomás acabara de chegar de uma das suas longas jornadas. Da
última, trouxera ideias estranhas quanto à Santa Inquisição (maldita), às indulgências, à bula de excomunhão,
aos decretais... e desta o que traria?
Ah, para quando o Tribunal do Santo
Oficio (maldito) neste reino? Para quando um chefe, ele
sentia-se à altura do desafio, como esse Torquemada que, sem emoções, varria a
infidelidade da face da Terra de modo tão
purificador e radical? - Bem-vindo sejais, frei Tomás. - O Senhor
esteja convosco, cardeal. Ficaram em silêncio de mútua medição. - Muita coisa
aconteceu neste reino durante a minha ausência, disse por fim frei Tomás. - Foi
essa a vontade de Deus, embora a dos homens só a desajude... - Ouvi falar do
que el-rei fez aos judeus... Pois é verdade que chegou a roubar-lhe os filhos para os baptizar?
Aí vem heresia, suspirou o cardeal. Se bem se recordava, este Tomás era
mesmo amigo de alguns judeus e passava a vida entre o Carmo e a Trindade a
visitá-los. Mas isso era no passado, a coisa acabaria... Os Agostinhos não
prestam, pensou o cardeal. - El-Rei expulsou-os, guardou alguns para seu
proveito, mas baptizando-os. Já não há judeus em este reino, pois. - Mas se
eram pessoas de tão bom trabalho e de tantas riquezas?!!!
- El-Rei sabe o que faz. E, de
resto, os judeus nem são pessoas. Para que o fossem, quis El-Rei que os baptizássemos
e guardou alguns no reino, mais suas fazendas e misteres. Os que ficaram,
ficaram como cristãos-novos e até de cristãos têm os nomes... - Terá sido
vontade de rainha... Mas se a rainha, entretanto, morreu... - As mulheres,
segundo sabeis, não têm vontade e admiti-lo é uma heresia. As mulheres apenas
têm caprichos e maldição... - Jesus foi concebido, em graça, no ventre de uma mulher...
Os Agostinhos, ah, os Agostinhos!!! Bem faz Leão X, nosso papa, que os traz
debaixo de olho... - Quereis comparar a Santa Mãe a uma mulher, mesmo rainha?
- Sou homem de fé e não de comparações,
e tal dizendo frei Tomás virou as costas ao cardeal. Assim que transpôs a
porta, os seus passos conheciam rumo. Iria até à Conceição Velha, a ver se dava
pelo paradeiro dos seus amigos, Isaac e Zacuto. Para trás ficava o cardeal, a
resmungar: - Estes Agostinhos! Se não lhes pomos mão, e Deus nos guarde!, ainda
acabam por criar alguma nova religião. Dito isto, o cardeal ajoelhou diante da
Cruz e pediu a salvação do Mundo, coisa apenas possível, a seu ver, com a
erradicação dos Agostinhos da face da Terra».
In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000,
ISBN 972-42-2392-2.
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