O casamento do primeiro rei de Portugal. A escolhida: Mafalda de
Mouriana
«(…) Se não temos forma de saber as razões de tal demora, também não
temos testemunho inequívoco acerca da justificação da escolhida para primeira
rainha de Portugal. Por isso é lícito que se nos coloque a questão de sabermos quem
era, afinal, a filha do conde Amadeu de Mouriana que, vinda da Saboia distante,
chegou a Portugal em 1146 para desposar
o primeiro rei deste jovem reino.
Chegada a Portugal, um outro problema se nos depara acerca da sua
pessoa, o seu nome. Afinal, como se
chamava a mulher do primeiro rei de Portugal, por outras palavras, a sua
primeira rainha?
Se é certo que a historiografia portuguesa sempre se lhe refere como Mafalda,
o mínimo que se pode dizer é que nem todas as formas que o registo do seu nome
conheceu a autorizam. Isto é, estamos perante alguém cujo nome nos chegou
escrito de formas diversas, nem todas a evoluírem, foneticamente, para a que
ficou consagrada na tradição portuguesa, escrita e oral. A chancelaria de seu
marido regista nada mais nada menos que as formas Maahlt, Maalht, Mahalth,
Mahauta, Mahalda, Mafalda, Maphalda, Maphalta, Maalta, Maalda, Mifalda, Matille
e Mathilda, numa profusão e variedade que parecem denunciar, elas próprias,
alguma dificuldade perante o nome da senhora. No meio de tal variedade,
colhe-se a conclusão de que a forma que ocorre mais vezes é Mafalda.
Porém, o caso parece-nos muito pouco significativo, pois a maioria dos
documentos de que hoje dispomos são cópias mais ou menos tardias, podendo por
isso conter algum estropiamento relativamente ao nome original. Se nos activermos
apenas às formas transmitidas pelos documentos originais, então reduzimos o
horizonte a Mahalth, Matille e Mafalda. E se lhes acrescermos aqueles
que mereceram da parte do editor dos documentos de Afonso Henriques a
classificação de possíveis originais, então teremos de juntar a forma Mahalda.
Mas não são apenas os documentos do seu régio esposo a transmitir-nos o
nome da primeira rainha de Portugal. Além deles, e em fonte coeva, do final de
sua vida, os Annales domni Alfonsi
portucalensis regis usam sempre a forma Mathilda, seja na ementa dedicada ao casamento do rei, na que
regista o nascimento do infante Martinho, futuro Sancho I, e na que memoria o
falecimento da rainha. E se valer de alguma coisa, diga-se ainda que a tradição
onomástica de que o seu nome é devedor, a da Casa de Albon, no Viennois,
obriga a considerar a forma Mathilda. Como veremos em lugar próprio,
esta é a forma do nome de uma filha sua, ao casar na Flandres, quase no final
do século XII.
É na versão breve da Chronica
Gothorum, mais tardia que os Annales,
que se produz a equivalência entre Matilde e Mafalda (Matildam, vel Mafaldam). Como
noutro lugar afirmámos, apenas por respeito à tradição aceitamos a forma Mafalda,
não sem acentuarmos algumas formas estranhas a este nome no latim da época, bem
como a dificuldade da sua pronúncia, vistas algumas das suas formas. Além de
que nos merece reparo o facto de todos os documentos em que surgem as formas mais
ou menos ligadas ao nome Mafalda serem da responsabilidade do chanceler
Alberto, cujo nome é, ele também, alvo das mais surpreendentes grafias. Na
envolvência dos problemas em torno da primeira rainha de Portugal, outro se nos
depara, de não menos relevância, até por ultrapassar os meros contornos dos
laços em que o casamento envolve quem o protagoniza. Referimo-nos às razões da
escolha de uma mulher na Casa de Mouriana-Saboia, ou apenas de Mouriana,
pois que é este o único título que a chancelaria portuguesa retém dos detidos
por Amadeu III, pai de Mafalda,
embora ele possuísse outros.
O enlace matrimonial de Afonso
Henriques nessa distante casa da cristandade europeia foi praticamente sempre
entendido, quase em exclusivo, como fruto da necessidade de o rei de Portugal
também por esta via se afastar da tutela do imperador Afonso VII, seu primo. Mas,
ainda assim, a Hispânia oferecia outras casas reinantes, fora da alçada do
imperador onde uma proposta de casamento com um rei, ainda que de um reino
recente, seria sempre bem vista. Além de que esse rei nem era um desconhecido
ou um aventureiro; ao contrário, ele era neto do nobilíssimo Afonso, o
gloriosíssimo imperador das Espanhas. Tinha, portanto, nobilitas suficiente para verem-se-lhe abrir as portas de muitas e
nobres casas.
Surge-nos, porém, bem diferente o quadro, se olharmos as disponibilidades
da Hispânia contemporânea, em matéria de mulheres e de mulheres em idade fértil,
capazes de, a breve trecho, oferecerem um herdeiro ao rei de Portugal. Ultrapassem-se
os estados do imperador e chegaremos a Aragão e a Navarra. No primeiro, Petronila,
a filha única de Ramiro II, nascida em 1136,
estava já prometida ao conde Raimundo Berenguer IV com o qual casaria em 1150. Em Navarra, Garcia Ramires IV tinha
uma única filha do primeiro casamento, Branca, criança ainda, mas já com
casamento concertado com Sancho (III) de Castela, filho do imperador, com quem
viria a casar alguns anos mais tarde.
Deste modo, na Península apenas restava a família do próprio Afonso
VII, seu primo. Se, por estratégia política, um enlace até poderia ser visto como
meio de sanar divergências e fomentar a aproximação, ainda assim lá estavam os
laços de parentesco que, por tão estreitos, eram mais factor de afastamento que
de união. Por então, era na Santa Sé que Afonso
Henriques pretendia fazer valer todos os seus interesses e nunca, em tal
instância, essa situação matrimonial passaria ignorada e sem sanção, tal o
denodo com que a Sé Apostólica controlava a matéria das ligações matrimoniais».
In As Primeiras Rainhas, Maria Alegria Fernandes Marques, Mafalda de
Mouriana, 1133?-1158, Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.
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