Leão e
Andaluz
O cavalo e a mula
«(…) Na sua singeleza estes números provam que a
arrancada dos jugadeiros, com o arroteamento de novas terras, mal ou não
começara nas terras do condado portucalense, Povo de pastores de ovelhas e de
cabras, povo de servos e colonos cultivadores de trigo, milho e pomares nas
terras baixas, o porco aquecia já a casa e estrumava o chão, o gado vacum
pastava nos lameiros ao lado do cavalo e da mula, muitos importados ou roubados
no sul. Perguntar-se-á: mas não pariam
as éguas do Norte? Claro, só que parece não haver criação organizada e
em larga escala. Com o aumento dos clientes dos chefes militares e o incremento
da guerra subiam os preços das armas e dos animais de guerra, por exemplo, uma
adarga pode ser trocada por duas éguas.
Determinados artigos tais como mulas, cavalos,
leitos, panos gregos (gressiscos), esporas de ouro, candelabros, lucernas,
cálices, liteiras, são, no condado portucalense trocados por soldos (dinheiro),
enquanto os porcos, as cabras, as terras, os bois, são trocados em espécie. É
que os primeiros artigos provinham do comércio externo com o mundo muçulmano de
onde chegavam regularmente mercadores mouriscos e judeus. Armazém de venda e posto
aduaneiro seria ainda, no século XI, a nossa Alfândega, antes de ser da Fé;
armazém de estofos devia ser Caxarias,
após a colonização de Almançor. Um tapete novo valia setenta soldos, quase um
cavalo; uma vila podia ser trocada por uma pele alfanec (reveladora da sua origem) e por um cavalo de trezentos
soldos. Se um leito palleum stratura
com alcalas contines se elevava ao preço máximo de quinhentos soldos em
968, em 1053 um servo que comprei
de mouros atingia apenas cem soldos, menos que um cavalo. Por mais que
escarvasse, o servo não suportava o estribo nem mordia o cabresto.
O comércio de artigos de luxo e de instrumentos de
guerra é alimentado pela classe senhorial; e a moeda corrente, rara, são os diremes e dinares do Andaluz (miscales) e ainda restos do tesouro que,
no final do século IX, o emir Mohâmede pagou a Afonso III pelo resgate do seu
general Haxime, aprisionado no Garbe por Xurumbaqui e Ibne Maruane, o Galego.
A teocracia leonesa
Os documentos do reino leonês dos séculos X e XI
mostram que eram os bispos os mais altos dignitários da nobreza senhorial. Se
encararmos a questão pelas fontes jurídicas chegaremos às mesmas conclusões. No
reino leonês, as leis fundamentais provêm das decisões dos concílios em que
participam de direito próprio o rei, os arcebispos, os bispos e os abades como
nos tempos do reino visigótico. Ao menos até ao Concílio de Oviedo de 1115 e como nos tempos de Recáredo, os
bispos propõem as leis vestindo-as de sagrado, e o rei garante-as na ordem
civil com o seu ferro e o dos seus barões.
O Código Visigótico expressa mais fielmente
os desígnios da aristocracia hispano-romano-visigótica do século VII, mas nem por
isso deixa de ameaçar com a adscrição à gleba e até ao ofício todos os homens
livres. O nascimento, o casamento, o cativeiro, o consentimento voluntário, o
abuso da força e, entre as sanções penais, o rapto, o adultério, o estupro, a
invasão armada em casa alheia, o testemunho falso, a venda de pessoa livre
contra a vontade desta (!), a
insolubilidade do devedor ou criminoso, o abandono da mulher casando o marido
com outra, as consultas de adivinhos, a falsificação da moeda, etc., tais eram
os caminhos que levavam à servidão. E o servo, só por vontade do senhor ou
cinquenta anos depois de ter fugido, adquiria a liberdade... Isto acontecia nos
finais do século VII. De então para cá, muita água correra. Mas ao manterem o Código
em vigor, os dirigentes acenavam com um espantalho, erguiam um modelo em que
muitos desejariam cingir-se e amortalhar-se.
A sociedade leonesa não reproduzia a papel químico
a sociedade visigótica e estava muito longe das decisões do Fuero Juzgo.
Mas que a servidão da gleba era a fonte do pão e da cevada senhorial provam-no
abundantemente as fontes documentais. Até aos fins do século X, as aldeias de
servos eram juguladas por diáconos e presbíteros marcados também pela servidão.
Herculano, nas notas ao volume VI da sua História de Portugal,
cita numerosos exemplos documentais indicando a servidão como a situação dominante.
Os documentos publicados nos Cuadernos de Historia de España por Claudio
Sánchez Albornoz confirmam o panorama e até nos revelam o caso, só
aparentemente espantoso de um servo
oferecendo a terra ao senhor para este o
proteger... Evidentemente que aqui e ali se
afirmava a liberdade pessoal, mas esta não tinha outro amanhã, a não ser a
inclusão na hoste senhorial. A liberdade pessoal só poderia afirmar-se ou pelo
ingresso na hoste senhorial, mas precária, ou através do novo poder colectivo,
o do concelho, que quebrava o monopólio da terra e libertava o homem das
servidões que a mesma terra ocultava». In António Borges Coelho, Comunas ou
Concelhos, Editorial Caminho, colecção Universitária, Lisboa, 1986.
Cortesia de Caminho/JDACT