Neto de Maria Stuart. Decapitado pelo Parlamento inglês
«(…) Após esse golpe de abuso do poder real, Carlos I, adepto convicto
do absolutismo, desfere novo e mais violento ataque contra o parlamentarismo,
mandando fechar a Câmara dos Comuns, que o incomodava com os seus discursos, as
suas críticas, os seus destemidos oradores. Os campeões da Liberdade, receosos
do rumo inconveniente que a política inglesa tomava, agitam-se num mal-estar
crescente. É então que surge um intrépido defensor do Direito Comum, Eduardo Coke,
o qual, correndo embora perigos, não se cansa de combater incessantemente o
despotismo real. As liberdades nacionais tinham sido gravemente ofendidas pela
criação de tribunais especiais em substituição dos tribunais de Direito comuns.
Na essência, o conflito, diz-nos Macaulay Trevelyan, consistia no
seguinte. Jaime I e Carlos I, de acordo com os adeptos do Direito romano, sustentavam
que a vontade do príncipe era a origem da lei, e que os juízes não passavam de leões nos degraus do trono, obrigados a
pronunciarem-se segundo as ordens dele emanadas. Ao contrário, Coke, seguindo o
espírito do Direito comum inglês, concebia a lei com existência autónoma,
superior tanto aos súbditos como ao soberano, e norma de julgamento imparcial
entre um e outro. As leis só poderiam ser alteradas pelo Supremo Tribunal do
Parlamento. Os tribunais especiais com a recepção do Direito romano e formas processuais
arbitrárias pertenciam a uma civilização estrangeira, pensava aquele jurista.
Junto a essa acesa questão havia ainda outros litígios, como o
financeiro e o eterno problema religioso, que dividia como antagonistas irreconciliáveis,
o monarca e os parlamentares. Carlos I, contudo, impassível e atendendo apenas
à sua vontade soberana, inicia o período de pura autocracia. Como principal
colaborador na governação, tinha o arcebispo Land, que, desde logo, imprimiu ao
governo um carácter eclesiástico e que, de resto, veio a ser vítima da sua
própria política, visto a furiosa reacção que lhe ofereceu o puritanismo. Apareceram
tribunais religiosos a interferir na vida civil, com as consequentes
perseguições. As esperanças das massas populares estavam sendo vivamente
contrariadas. Simultaneamente, a rainha Henriqueta-Maria alimentava a arrogância
dos católicos, que não perdiam o ensejo de ferir os sentimentos religiosos dos
puritanos.
No meio deste cenário em desordem, o monarca, sonhando com a unidade
religiosa (de que o país cada vez mais se distanciava!) com a unidade
política e social anglicana, e com o poder absoluto, triângulo em que pretendia
apoiar o seu reinado!, permitia todas as perseguições e execuções que ao
arcebispo-ministro se afiguravam essenciais. Coleccionador apaixonado de
quadros de arte e de manuscritos iluminados, arqueólogo e musicista apreciável,
protector do genial Van Dick e tendo, sobre todas essas tendências de certa
maneira absorventes, o mais soberano desprezo pela opinião pública e pela
representação popular, este homem impermeável ao exterior, este escocês pouco
maleável, que não se amoldava às circunstâncias, antes as desafiava altivamente,
não era, decerto, o rei capaz de conduzir a bom caminho um povo que nessa época
era feroz, avaro, indócil, aferrado às tradições, mergulhado em controvérsias
religiosas e que já tinha enraizado na alma o capitoso gosto da liberdade.
Autêntico aristocrata, contemplativo, indiferente, frio, um pouco triste,
apaixonado pelos valores espirituais, não poderia ele lutar, com êxito, contra organizações
resolutas como os terríveis Cabeças Redondas,
que consubstanciavam a alma do povo e os seus mais fortes anseios. Com a queda
trágica do Primaz Land, o Rei-Mártir
entregou-se nas mãos de Tomás Wentwort, depois conde de Strafford, mais
esclarecido do que aquele, do ponto de vista político, talvez mais arguto, mas
que ascendeu ao poder demasiado tarde para conseguir salvar o soberano da
guerra civil; sempre fatal aos Stuarts. Wentwort, como Land fizera, não se
poupava a esforços para manter as prerrogativas reais e fortalecer a coroa.
Por essas alturas, já os escoceses se tinham
revoltado pegando em armas contra o poder, e os ingleses reconheciam que o
descontentamento no país lavrava de forma geral. Do outro lado, os irlandeses
mostravam-se também descontentes com a política de desnacionalização e de
espoliação a que, sub-repticiamente, estavam tentando levar as suas terras». In
Américo Faria, Dez Monarcas Infelizes, Livraria Clássica Editora, colecção 10,
Lisboa, s/d.
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