sábado, 3 de agosto de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «… aspectos aparentemente contraditórios: ‘como é que uma cidade que se encontra muitas vezes em estado de guerra, pode ser ao mesmo tempo a cidade da tolerância, das três religiões e da cultura?’»

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Um minarete como campanário
«A Toledo da Idade Média, e sobretudo a destes séculos XII e XIII, parece original e revela-se muito complexa. Como pode uma cidade ser, ao mesmo tempo, a cidade da tolerância, das três religiões e da Reconquista? Logo no início do seu D. Quixote, Cervantes conta-nos como, encontrando-se um dia em Toledo na Rua de Alcana, comprou a um rapazinho alguns cadernos velhos escritos com caracteres árabes. Intrigado, mandou-os traduzir a um desses mouriscos que ainda frequentavam as ruas da cidade e o mourisco traduziu de imediato o título de árabe para castelhano, da seguinte forma: História de D. Quixote de La Mancha escrita por Cid Hamed Ben Engeli, historiador árabe. Levando ao extremo esta ficção, Cervantes afirma não ser mais do que o pai putativo, dessa obra-prima descoberta numa esquina de uma rua toledana.
Quase na mesma época, é El Greco que, residindo em Toledo desde 1577, nos dá a sua própria visão da cidade em várias das suas telas. A mais bela sem dúvida destas pinturas encontra-se no Metropolitan Museum de Nova Iorque e representa a cidade sob um céu de tempestade; o céu parece descer sobre a terra enquanto a cidade, empoleirada num pico rochoso, parece escalar o céu. Visão de uma cidade em perpétuo dinamismo onde aparecem os sinais de um passado glorioso: fortificações, ponte de Alcântara, castelo de San Servando, a catedral.
Ficção literária com Cervantes, criação artística com El Greco, Toledo nunca deixou, ao longo dos séculos, indiferente aquele que a visitava. Na nossa época, os batalhões de turistas que, em filas cerradas, mal regressa o bom tempo, se deslocam pelas ruas da cidade, são o último testemunho desse facto. Quer se descubra a cidade do alto de uma das colinas que dominam o vale do Tejo, tomando a estrada extramuros que vai da ponte de S. Martinho à ponte de Alcântara, ou quer se entre nela junto à porta de Bisagra, a impressão é idêntica: está-se perante uma cidade medieval de tradição hispano-muçulmana, quase intacta. Na verdade, o Islão marcou profundamente a cidade.
Théophile Gautier, que visitou Toledo em 1840, foi sensível ao aspecto oriental da cidade, e descreveu-nos assim o seu primeiro contacto: Fizemos a nossa entrada em Toledo, ofegantes de curiosidade e de sede, por uma magnífica porta árabe com o arco elegantemente talhado e pilares de granito sobrepujados por bolas e enfeitados com versículos do Alcorão. Esta porta chama-se Puerta del Sol; é avermelhada, cosida e curtida no tom como uma laranja de Portugal e apresenta um perfil admirável contra a limpidez de um céu lápis-lazuli. Com efeito, o panorama admirável que se nos depara a partir da ermida da Virgen de La Cabeza, mostra-nos uma cidade com casas unidas umas às outras e a partir do primeiro passeio ao longo da rede inextricável de ruelas tortuosas, evocamos uma qualquer medina oriental ou magrebina: neste entrelaçado de pequenas veias, as casas características das cidades hispano-muçulmanas atraem-nos a atenção; os portões fecham a entrada de um vestíbulo que dá para um pátio interior onde se desenrola o essencial da vida íntima familiar; quanto às fachadas, têm poucas aberturas; a estrutura do habitat é introvertida. À esquina de uma rua, uma igreja, mas que tem um minarete como campanário…
A segunda imagem de Toledo que se nos impõe é a de uma cidade forte, rodeada de muralhas, erguidas num ponto estratégico: as pontes são fortificadas e as portas da cidade são também postos de defesa. Toledo quer-se inexpugnável porque se sabe que tomar Toledo é decapitar a Espanha. Depois de 1085, data da tomada da cidade por Afonso VI, as pessoas defendem-se e atacam. É de Toledo, a partir de então cidade fronteira entre a cristandade e o Islão, que partem os assaltos da Reconquista. É lá que se organiza uma cruzada que reúne os príncipes cristãos da península e alguns estrangeiros: vão derrotar o exército almóada em Navas de Tolosa e, desse modo, destruir o ferrolho que protegia a Andaluzia. Fernando III de Castela, o Santo, primo de S. Luís, rei de França, terá artes de alargar a brecha e conquistar uma a uma as grandes cidades do Guadalquivir. Toledo, cidade da Reconquista.
Mas Toledo não poderia deixar-se limitar em algumas imagens estereotipadas ou em algumas fórmulas rápidas. Tem ainda múltiplos aspectos que os historiadores nos apresentam. A Toledo da Idade Média, e sobretudo a desses séculos XII e XIII que agora atraem particularmente a nossa atenção, é muito complexa e pode mesmo apresentar-se aos olhos de um homem do século XX-XXI com aspectos aparentemente contraditórios: como é que uma cidade que se encontra muitas vezes em estado de guerra, pode ser ao mesmo tempo a cidade da tolerância, das três religiões e da cultura?»

In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT