Um minarete como campanário
«A Toledo da Idade Média, e sobretudo a destes séculos XII e XIII, parece
original e revela-se muito complexa. Como pode uma cidade ser, ao mesmo tempo,
a cidade da tolerância, das três religiões e da Reconquista? Logo no início do seu D. Quixote, Cervantes conta-nos como, encontrando-se um dia em
Toledo na Rua de Alcana, comprou a um rapazinho alguns cadernos velhos escritos
com caracteres árabes. Intrigado, mandou-os traduzir a um desses mouriscos que
ainda frequentavam as ruas da cidade e o mourisco traduziu de imediato o título
de árabe para castelhano, da seguinte forma: História de D. Quixote de La Mancha escrita por Cid Hamed Ben Engeli,
historiador árabe. Levando ao extremo esta ficção, Cervantes afirma não ser
mais do que o pai putativo, dessa
obra-prima descoberta numa esquina de uma rua toledana.
Quase na mesma época, é El Greco que, residindo em Toledo desde 1577, nos dá a sua própria visão da
cidade em várias das suas telas. A mais bela sem dúvida destas pinturas
encontra-se no Metropolitan Museum de Nova Iorque e representa a cidade
sob um céu de tempestade; o céu parece descer sobre a terra enquanto a cidade, empoleirada
num pico rochoso, parece escalar o céu. Visão de uma cidade em perpétuo
dinamismo onde aparecem os sinais de um passado glorioso: fortificações, ponte
de Alcântara, castelo de San Servando, a catedral.
Ficção literária com Cervantes, criação artística com El Greco, Toledo
nunca deixou, ao longo dos séculos, indiferente aquele que a visitava. Na nossa
época, os batalhões de turistas que, em filas cerradas, mal regressa o bom
tempo, se deslocam pelas ruas da cidade, são o último testemunho desse facto. Quer
se descubra a cidade do alto de uma das colinas que dominam o vale do Tejo,
tomando a estrada extramuros que vai da ponte de S. Martinho à ponte de
Alcântara, ou quer se entre nela junto à porta de Bisagra, a impressão é
idêntica: está-se perante uma cidade
medieval de tradição hispano-muçulmana, quase intacta. Na verdade, o Islão marcou profundamente a cidade.
Théophile Gautier, que visitou Toledo em 1840, foi sensível ao aspecto
oriental da cidade, e descreveu-nos assim o seu primeiro contacto: Fizemos a nossa entrada em Toledo, ofegantes
de curiosidade e de sede, por uma magnífica porta árabe com o arco
elegantemente talhado e pilares de granito sobrepujados por bolas e enfeitados
com versículos do Alcorão. Esta porta chama-se Puerta del Sol; é avermelhada,
cosida e curtida no tom como uma laranja de Portugal e apresenta um perfil
admirável contra a limpidez de um céu lápis-lazuli. Com efeito, o panorama
admirável que se nos depara a partir da ermida da Virgen de La Cabeza,
mostra-nos uma cidade com casas unidas umas às outras e a partir do primeiro
passeio ao longo da rede inextricável de ruelas tortuosas, evocamos uma
qualquer medina oriental ou magrebina:
neste entrelaçado de pequenas veias, as casas características das cidades
hispano-muçulmanas atraem-nos a atenção; os portões fecham a entrada de um
vestíbulo que dá para um pátio interior onde se desenrola o essencial da vida
íntima familiar; quanto às fachadas, têm poucas aberturas; a estrutura do habitat é introvertida. À esquina de uma
rua, uma igreja, mas que tem um minarete como campanário…
A segunda imagem de Toledo que se nos impõe é a de uma cidade forte,
rodeada de muralhas, erguidas num ponto estratégico: as pontes são fortificadas
e as portas da cidade são também postos de defesa. Toledo quer-se inexpugnável
porque se sabe que tomar Toledo é decapitar a Espanha. Depois de 1085, data da tomada da cidade por Afonso
VI, as pessoas defendem-se e atacam. É de Toledo, a partir de então cidade
fronteira entre a cristandade e o Islão, que partem os assaltos da Reconquista.
É lá que se organiza uma cruzada que reúne os príncipes cristãos da península e
alguns estrangeiros: vão derrotar o exército almóada em Navas de Tolosa e,
desse modo, destruir o ferrolho que protegia a Andaluzia. Fernando III de
Castela, o Santo, primo de S. Luís,
rei de França, terá artes de alargar a brecha e conquistar uma a uma as grandes
cidades do Guadalquivir. Toledo, cidade da Reconquista.
Mas Toledo não poderia deixar-se limitar em algumas imagens estereotipadas
ou em algumas fórmulas rápidas. Tem ainda múltiplos aspectos que os
historiadores nos apresentam. A Toledo da Idade Média, e sobretudo a desses
séculos XII e XIII que agora atraem particularmente a nossa atenção, é muito
complexa e pode mesmo apresentar-se aos olhos de um homem do século XX-XXI com
aspectos aparentemente contraditórios: como
é que uma cidade que se encontra muitas vezes em estado de guerra, pode ser ao
mesmo tempo a cidade da tolerância, das três religiões e da cultura?»
In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT