Um toledano diferente dos outros
«(…) Como a noite é bela! Decide ficar ali em frente às costas de
África. Agora sabe que em breve abandonará este continente, sente-se invadido
por todo um passado, o seu passado. Na suavidade desta noite de Verão,
desejaria agarrá-lo, fazê-lo reviver, actualizá-lo de modo a gozar ainda mais
intensamente os poucos dias que lhe restam para viver nesta terra de Espanha. Oiçamos
pois esse longo monólogo no qual um homem vai libertar a intimidade do seu ser,
vai ousar dar-nos a chave da sua vida. Sigamo-lo pois nas profundezas das
galerias da sua alma, por onde vai conduzir-nos. Confessemos-lhe desde já a
nossa simpatia e a nossa compreensão. Aceitemos deixar-nos guiar mesmo que as
suas declarações nos pareçam muito estranhas. Porque duvidaríamos da boa fé de
alguém que se entrega assim na nudez
do seu ser?
Precisamente, ele começa a falar proferindo uma verdade de ordem geral,
e retoma a imagem da chave que acabei de utilizar: Cada homem, diz, é um
mistério de que só ele tem a chave... Não o interromperei mais, dou-lhe a
palavra definitivamente e, então ele continua:
...Para mim, tudo se resume a estas palavras a gruta de Toledo. Essa gruta é a parte secreta da cidade; nela se
desenrolou toda uma história escondida. Li, num manuscrito muito antigo, que
recebeu Tubal, filho de Jafé, neto de Noé, ou seja, que o primeiro homem que veio
para Espanha depois do dilúvio, encontrou nela refúgio. Mais tarde, Hércules
arranjou-a e viveu nela. Durante as minhas estadas em Toledo, ia muitas vezes a
essa gruta para nela aperfeiçoar os meus conhecimentos das forças ocultas da
natureza. Graças ao convívio com peritos em Scientia
toletana como então diziam os cristãos, a magia, a alquimia, a astrologia,
em breve deixaram de ter segredos para mim. Mais tarde, quando vieram de toda a
Europa beber o nosso saber em Toledo, Gerardo de Cremona traduziu alguns dos
nossos tratados de geomancia que
encheram de espanto os países de além Pirenéus.
Em pouco tempo, após a minha primeira estada em Toledo, tornei-me um
mestre em ciências ocultas, e consegui até, devido à porfia nas minhas
pesquisas, decifrar um dos segredos da vida ou, pelo menos, da minha vida. Acontece
que adquiri o dom da vidência em relação à minha vida, não para predizer o
futuro ou influenciá-lo, está nas mãos de Deus, está escrito e é, portanto,
imutável, mas para rever todo o meu passado.
Sei hoje em dia que a minha vida não é apenas a desse Tulaytuli que,
neste mês de Agosto de 1492, lamenta
o seu destino, mas que se liga a todas as existências desses Tulaytuli que me precederam,
com os quais formo uma cadeia ininterrupta desde o dia em que me foi dado, em
Toledo, esse ápodo honorífico de Toledano.
Este conhecimento de todas essas existências
sucessivas que unificam a minha vida, que são minha vida, adquiria-a nos livros,
no estudo, na reflexão, mas é sobretudo ciência do coração. Apenas podia ser
dada àquele que, como eu, está possuído pela sua cidade ao ponto de merecer
usar o seu nome. Ciência de amor, ciência de possessão. Ousaria dizer revelação
divina, não sei, mas certamente, consolo nas provações.
O meu primeiro contacto com Toledo
ocorreu há oito séculos. Em companhia de Tariq ibn Ziyad, atravessei em 92 (711)
o estreito que mais tarde merecerá usar o seu nome (Djébel al-Tariq,
Gibraltar, ou montanha de Tariq). Realizámos então uma incursão audaciosa que
nos levou do extremo sul da península a Jaén, a Ubeda e daí atravessámos a Sierra
Morena. Alguns dias mais tarde, depois de uma longa marcha nocturna, Toledo apareceu-nos na claridade de uma
dessas manhãs castelhanas em que o sol torna ainda mais belo tudo aquilo em que
toca com os seus primeiros raios. Toledo ali estava, ornada com o seu diadema e
as suas jóias. Entregou-se sem resistência como uma amante que espera desde sempre
o seu bem amado. Mais tarde, no século V da Hégira,
lerei sob a pena do andaluz al-Bakri que o seu nome latino de Tulatu significava a alegria dos seus habitantes. Oh sim, é isso, Toledo foi para nós e assim deveria ter permanecido para sempre a
cidade da alegria onde era tão bom viver.
Mas Tariq não se contentou com a contemplação gratuita desta beleza.
Queria tudo, o poder absoluto, as riquezas, o gozo do passado e do presente. E
o passado de Toledo era o enorme espólio
acumulado na corte dos visigodos. Deitou a mão a tudo e, sobretudo, a essa jóia
das jóias que era a Mesa do rei Salomão. Salomão, filho de David, mandou construí-la
outrora para o templo de Jerusalém. Nada era suficientemente belo para Deus.
Era de ouro e prata, a cor quente do ouro casava-se harmoniosamente com o
branco da prata. Três festões, um de pérolas, outro de rubis, e o terceiro de
esmeraldas formavam nela um adereço de colares. No grande tampo da mesa estavam
desenhados doze pães, símbolo dos doze signos do zodíaco e do ano. Os trezentos
e sessenta e cinco pés que a sustentavam, eram também um eco longínquo desse
simbolismo zodiacal, tal como o candelabro de sete braços, situado na proximidade,
no templo, simbolizava os sete planetas e os sete dias da semana. Homenagem ao
Deus eterno, senhor do mundo, do espaço e do tempo».
In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT