terça-feira, 20 de agosto de 2013

Muçulmanos. Cristãos. Judeus. Toledo. Séculos XII-XIII. «Toledo ali estava, ornada com o seu diadema e as suas jóias. Entregou-se sem resistência como uma amante que espera desde sempre o seu bem amado»

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Um toledano diferente dos outros
«(…) Como a noite é bela! Decide ficar ali em frente às costas de África. Agora sabe que em breve abandonará este continente, sente-se invadido por todo um passado, o seu passado. Na suavidade desta noite de Verão, desejaria agarrá-lo, fazê-lo reviver, actualizá-lo de modo a gozar ainda mais intensamente os poucos dias que lhe restam para viver nesta terra de Espanha. Oiçamos pois esse longo monólogo no qual um homem vai libertar a intimidade do seu ser, vai ousar dar-nos a chave da sua vida. Sigamo-lo pois nas profundezas das galerias da sua alma, por onde vai conduzir-nos. Confessemos-lhe desde já a nossa simpatia e a nossa compreensão. Aceitemos deixar-nos guiar mesmo que as suas declarações nos pareçam muito estranhas. Porque duvidaríamos da boa fé de alguém que se entrega assim na nudez do seu ser?
Precisamente, ele começa a falar proferindo uma verdade de ordem geral, e retoma a imagem da chave que acabei de utilizar: Cada homem, diz, é um mistério de que só ele tem a chave... Não o interromperei mais, dou-lhe a palavra definitivamente e, então ele continua:
...Para mim, tudo se resume a estas palavras a gruta de Toledo. Essa gruta é a parte secreta da cidade; nela se desenrolou toda uma história escondida. Li, num manuscrito muito antigo, que recebeu Tubal, filho de Jafé, neto de Noé, ou seja, que o primeiro homem que veio para Espanha depois do dilúvio, encontrou nela refúgio. Mais tarde, Hércules arranjou-a e viveu nela. Durante as minhas estadas em Toledo, ia muitas vezes a essa gruta para nela aperfeiçoar os meus conhecimentos das forças ocultas da natureza. Graças ao convívio com peritos em Scientia toletana como então diziam os cristãos, a magia, a alquimia, a astrologia, em breve deixaram de ter segredos para mim. Mais tarde, quando vieram de toda a Europa beber o nosso saber em Toledo, Gerardo de Cremona traduziu alguns dos nossos tratados de geomancia que encheram de espanto os países de além Pirenéus.
Em pouco tempo, após a minha primeira estada em Toledo, tornei-me um mestre em ciências ocultas, e consegui até, devido à porfia nas minhas pesquisas, decifrar um dos segredos da vida ou, pelo menos, da minha vida. Acontece que adquiri o dom da vidência em relação à minha vida, não para predizer o futuro ou influenciá-lo, está nas mãos de Deus, está escrito e é, portanto, imutável, mas para rever todo o meu passado.
Sei hoje em dia que a minha vida não é apenas a desse Tulaytuli que, neste mês de Agosto de 1492, lamenta o seu destino, mas que se liga a todas as existências desses Tulaytuli que me precederam, com os quais formo uma cadeia ininterrupta desde o dia em que me foi dado, em Toledo, esse ápodo honorífico de Toledano. Este conhecimento de todas essas existências sucessivas que unificam a minha vida, que são minha vida, adquiria-a nos livros, no estudo, na reflexão, mas é sobretudo ciência do coração. Apenas podia ser dada àquele que, como eu, está possuído pela sua cidade ao ponto de merecer usar o seu nome. Ciência de amor, ciência de possessão. Ousaria dizer revelação divina, não sei, mas certamente, consolo nas provações.

O meu primeiro contacto com Toledo ocorreu há oito séculos. Em companhia de Tariq ibn Ziyad, atravessei em 92 (711) o estreito que mais tarde merecerá usar o seu nome (Djébel al-Tariq, Gibraltar, ou montanha de Tariq). Realizámos então uma incursão audaciosa que nos levou do extremo sul da península a Jaén, a Ubeda e daí atravessámos a Sierra Morena. Alguns dias mais tarde, depois de uma longa marcha nocturna, Toledo apareceu-nos na claridade de uma dessas manhãs castelhanas em que o sol torna ainda mais belo tudo aquilo em que toca com os seus primeiros raios. Toledo ali estava, ornada com o seu diadema e as suas jóias. Entregou-se sem resistência como uma amante que espera desde sempre o seu bem amado. Mais tarde, no século V da Hégira, lerei sob a pena do andaluz al-Bakri que o seu nome latino de Tulatu significava a alegria dos seus habitantes. Oh sim, é isso, Toledo foi para nós e assim deveria ter permanecido para sempre a cidade da alegria onde era tão bom viver.
Mas Tariq não se contentou com a contemplação gratuita desta beleza. Queria tudo, o poder absoluto, as riquezas, o gozo do passado e do presente. E o passado de Toledo era o enorme espólio acumulado na corte dos visigodos. Deitou a mão a tudo e, sobretudo, a essa jóia das jóias que era a Mesa do rei Salomão. Salomão, filho de David, mandou construí-la outrora para o templo de Jerusalém. Nada era suficientemente belo para Deus. Era de ouro e prata, a cor quente do ouro casava-se harmoniosamente com o branco da prata. Três festões, um de pérolas, outro de rubis, e o terceiro de esmeraldas formavam nela um adereço de colares. No grande tampo da mesa estavam desenhados doze pães, símbolo dos doze signos do zodíaco e do ano. Os trezentos e sessenta e cinco pés que a sustentavam, eram também um eco longínquo desse simbolismo zodiacal, tal como o candelabro de sete braços, situado na proximidade, no templo, simbolizava os sete planetas e os sete dias da semana. Homenagem ao Deus eterno, senhor do mundo, do espaço e do tempo».

In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos, Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.

Cortesia de Terramar/JDACT