… Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno
demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volúpia e
duma dispersão aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polícia e sou capaz de
enfrentar um exército; passo a vida a praticar virtudes que proíbo terminantemente
aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui
encontrar aquele equilíbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes
obras. Debato-me entre forças contraditórias, e ao cabo de cada livro sinto-me
insatisfeito e culpado como um pecador que não cumpriu bem a sua penitência.
Não tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, só desejo conquistar a glória
de a ter servido humilde e totalmente; mas não consegui ainda dar-lhe tudo,
jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pés o homem
civil que sou, e não posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como
qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais.
Também tenho afectos. E a trama de deveres e apegos, embora redima um homem do
seu egoísmo nativo, rouba-lhe força criadora. Abandono tudo para correr a casa
dum amigo que está com dor de dentes, e passo uma noite em claro porque operei
um doente, e ele pode ter uma hemorragia. Mas a minha fraqueza maior é não
poder desprezar ninguém, mesmo os próprios inimigos. São meus semelhantes,
apesar de tudo, e eu não consigo descrer do homem, seja ele como for. Em vez de
os esquecer, trago-os no pensamento. Sofro por eles. A minha grande alegria é
admirar os outros, e procuro encontrar em cada um as linhas positivas do seu
caminho. Afinal somos todos elos de uma grande corrente, e é pelos ferrujentos
que ela pode quebrar. Aflijo-me, solidário com a sua humanidade, que gostava de
ver mais generosa, sem reparar que o tempo desaparece, alheio às razões que
impedem a semente de germinar…» In Miguel Torga, Diário, 1946.
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