terça-feira, 20 de agosto de 2013

O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto. António Cândido Franco. «Não é só em Camões que encontramos a ideia do reino lusitano ser "cume da cabeça / De Europa toda" (Canto III), é já na própria cartografia dos séculos XIV e XV, desenvolvida depois no século XVI com o aperfeiçoamento quer das técnicas…»

jdact

O Mar e o Marão
«É possível, a partir duma leitura atenta das últimas páginas do livro O Encoberto de Sampaio Bruno, perceber a existência dum ritmo binário, espécie de estrutura elementar das coisas, que tanto abraça a história de Portugal como a própria história do mundo. Entre nós, como aliás em tudo aquilo que à história dos homens possa dizer respeito, um tal sentido binário estaria sobretudo circunscrito à diferença entre Passado e Futuro, constituindo cada um deles uma unidade parcelar de totalidade mais vasta. Essa totalidade seria então constituída pela justaposição contrapolar do Passado e do Futuro, que teriam ambos um valor semelhante na história humana àquele que tem o binómio Luz e Sombra na história do mundo ou do cosmos. Pode-se pensar que a história dos homens se rege, no seu plano específico, pelos mesmos valores que presidem ao desenvolvimento da história das coisas cósmicas. A luz equivale ao passado, enquanto que a sombra equivale ao futuro.
Não creio ser difícil perceber, até porque Bruno dá indicações nesse sentido, que o Mar, entendido este num sentido emblemático de que ainda lograremos revelar alguns pormenores, constituiu o fundamento mesmo daquilo que podemos chamar o primeiro ciclo da nossa história, o ciclo do passado a que, na história mais vasta do mundo, corresponde o ciclo da luz. É um ciclo bem definido e delimitado, pelo menos nos seus valores constitutivos, quando não nas datas, que se nos afiguram duma perfeição enigmática, e que tem no centro do seu corpo os Descobrimentos. As descobertas físicas são o coração do primeiro ciclo da nossa história. São elas que dão sentido e valor ao Mar, entendido como entidade abstracta, e são elas que definem todo um ciclo bem conhecido da história entre nós.
Convém, antes de mais, até para se poder perceber a importância dos futuros desenvolvimentos a que estaremos sujeitos como país no trânsito para o futuro, saber que este ciclo particular da história entre nós, a que damos o nome de Mar, se confunde com a própria história geral da humanidade de então. E identicamente se confunde porque, como se sabe, toda a humanidade de então passou a estar, nos seus acontecimentos gerais, dependente dos acontecimentos particulares então desenvolvidos no mundo pelos portugueses.
Não é só em Camões que encontramos a ideia do reino lusitano ser cume da cabeça / De Europa toda (Canto III), é já na própria cartografia dos séculos XIV e XV, desenvolvida depois no século XVI com o aperfeiçoamento quer das técnicas quer dos conhecimentos, que deparamos com uma situação perfeitamente central, ou melhor frontal, de Portugal. A cartografia da altura, que não tinha abdicado em definitivo das preocupações metafísicas na representação da Terra, ao modo de Santo Isidoro de Sevilha ou de Cosmas Indicopleustes, continuava a animizar as formas da terra então conhecidas (sobretudo a Ásia, a África e a Europa que constituíam um corpo único). A fronte irradiadora, que tinha simultaneamente alguma coisa de boca devoradora, do corpo animal do mundo era colocada pela cartografia na parte ocidental da Península Ibérica. Os pés apareciam em África e em Malaca. O rabo em Cipango. Veja-se, como exemplo paradigmático desta representação, a carta de Martin Waldseemüller, integrada em 1513 numa reedição da Geographia de Ptolomeu, A carta inspira-se em modelos portugueses.
Ao percorrerem fisicamente a Terra, e acabando mesmo em 1519 por abraçá-la num único abraço os portugueses tenderam para uma unidade física da Terra, uma aproximação dos povos e das culturas, que constituirão sempre a dimensão mundial das suas descobertas. Uma tal unidade física da Terra, que teve talvez a sua expressão representativa nas várias esferas armiladas que fomos grafando e esculpindo, acabou, tanto aos olhos dos portugueses como dos restantes povos, por centrar em Portugal em determinado momento os destinos mesmos da humanidade. A identidade dos dois planos, o português e o humano, realiza-se a partir do momento em que o primeiro pôde ser tomado como a parte representativa do todo porque a unidade das coisas, neste caso a unidade física das coisas, constitui o degrau decisivo da existência». In António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989, IADE, Lisboa.

Cortesia de IADE/JDACT