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Paris,
3 de Junho de 1940
«(…)
A maioria das freiras e das noviças vai para o convento de Clermont-Ferrand, informou
a Madre. Não fica ninguém em Paris?, angustiou-se Carol. O Saint-Sulpice será
encerrado. Tens de regressar a Portugal. Não quero!, protestou a minha prima. Madre
Mary pegou-lhe na mão com a ternura do costume. Conhecia os factos: a morte da
mãe, a zanga com o pai, o curso que ia a meio, as amizades parisienses. Porém,
repetiu, não poderia permanecer em Paris. Querida Carrô, em Clermont-Ferrand o
convento não é grande. Mas arranjo-te um quarto na cidade. Embora com enorme
relutância, Carol lá prometeu partir. Já de saída, lembrou-se da Hirondelle. Como irão para
lá?
Nas Caraíbas, Madre Mary tirara a
carta de condução e em Paris guiava uma pequena camioneta, propriedade do
Saint-Sulpice, que levaria as últimas freiras, enquanto as outras partiriam de
comboio, algumas já no dia seguinte. E a minha bicicleta?, perguntou Carol. Não
admitia deixar a Hirondelle. Embora
comprada em segunda mão, era um modelo de topo e fora cara. Com um selim Terry, aros e
para-lamas de alumínio, um travão dianteiro u-Brake
e
um travão traseiro Cantlever, a super Hirondelle exibia uma
característica única que a celebrizava: o sistema Retro-Directe. A originalidade
permitia que se pedalasse para a frente quando o terreno era plano, invertendo-se
a situação nas subidas, onde se pedalava para trás, o que desmultiplicava a força
nos pedais. A tudo isso, havia a juntar uma pintura negra sem um risco e dois
resistentes pneus Michelin
650,
que venciam qualquer piso! O orgulho da minha prima. Conhecedora daquela forte
estima, madre Mary sugeriu-lhe que levasse a Hirondelle
no
comboio, podia ir à estação saber quanto custaria o transporte. De caminho,
informava-se sobre o preço do bilhete para Portugal. Mais vale teres essa
possibilidade preparada, isto pode ser pior do que imaginamos, rematou ela,
fazendo com que a dor de barriga de Carol se agravasse.
Paris,
3 de Junho de 1940
Ainda abalada pelas novidades,
Carol, quando entrou na copa, encontrou uma mulher sentada a uma mesa onde
repousava uma também solitária garrafa de whisky. Polly, uma americana de braços polpudos,
conduzia uma ambulância ao serviço da Cruz Vermelha. Meses antes, embarcara uma
carrinha Ford
num
barco, em Boston, e rumara à Europa, para ser útil na guerra. Numa oficina de
Antuérpia, mandara pintar o veículo de branco, com uma cruz vermelha em cada
porta lateral. Depois, partira em missão, transportando feridos entre os
hospitais e uma frente de batalha sempre em recuo. Estivera algumas semanas na
Holanda e na Bélgica, mas acabara no Norte de França, empurrada pelo rápido
avanço dos alemães. Dez dias antes, rumara a Paris com cinco soldados ingleses
na ambulância. Dois tinham morrido durante a viagem e entregara os outros num
hospital parisiense, perto do Parque Monceau, mas desde essa altura vivia
entediada por não poder regressar a Dunquerque, cidade agora totalmente cercada
pelos alemães. Sem alento ou distracção, de dia cirandava sem destino pelos boulevards de Paris e à
noite visitava os night-clubs
mais
na moda, o L´Etoile de Kléber ou o Le Gerny´s, em busca de companhia masculina.
Vai um copo?, perguntou. O
desafio era subversivo, a garrafa fora trazida às escondidas, madre Mary não
levantara a proibição do álcool na residencial. À saúde deles, concluiu a
americana. Certamente devido à sua nacionalidade, os Estados Unidos tinham ainda
uma postura neutral em 1940, nunca usava a palavra nazis para descrever os alemães,
como se não os quisesse ofender. Achas que vão invadir Paris? Sim, Cárol,
respondeu Polly, num tom condescendente. Tanto os ingleses como os americanos
chamavam Cárol, com acento no a, à minha
prima. Quanto aos franceses, uns acentuavam o o tratando-a por Caról, outros usavam o Caroline, mas só madre Mary
aplicava o simpático Carrô». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu
dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.
Cortesia
CdasLetras/JDACT