sexta-feira, 17 de julho de 2020

Baudolino. Umberto Eco. «… aquele sorriso, e os seios, e as vestes e os cabelos que dançavam ao vento, de modo que, ao vê-la de longe, ninguém podia acreditar que fosse de bronze, porque parecia de carne viva...»

jdact e wikipedia

Baudolino encontra Nicetas Coniates
«(…) Estás louco, senhor Nicetas. Primeiro, me fazes descer até aqui e abandonar o meu cavalo, enquanto eu poderia chegar ao Neórion sozinho, indo inclusive pelas ruas. Segundo, pensas que podes chegar à tua família antes que te parem outros dois soldados, como aqueles com os quais te encontrei? E mesmo se conseguires, o que farás? Cedo ou tarde alguém descobre teu esconderijo, e se esperas apanhar os teus e fugir, para onde irás? Tenho amigos em Selímbria, disse Nicetas, perplexo. Não sei onde fica, mas antes de chegar até lá terás de sair da cidade. Ouve bem, não poderás fazer nada pela tua família. E, todavia, para onde te levarei encontraremos amigos genoveses, que fazem e acontecem nesta cidade, estão acostumados a tratar com os sarracenos, com os hebreus, com os monges, com a guarda imperial, com os mercadores persas, e, agora, com os peregrinos latinos. É uma gente astuta, dirás a eles onde está a tua família e eles amanhã hão-de levá-la até onde nos encontrarmos, como, não sei, mas irão fazê-lo. E o fariam de qualquer jeito por mim, que sou um velho amigo, e por amor a Deus, mas são genoveses, e se lhes deres algum presente, tanto melhor. Depois ficaremos lá até que as coisas se acalmem, pois, como sempre, um saque não dura mais do que alguns dias, acredite em mim, vi muitos deles. E depois, para Selímbria, ou aonde quiseres. Nicetas agradeceu, convencido. E, enquanto caminhavam, perguntou-lhe por que estava na cidade, senão era um peregrino crucífero. Cheguei quando os latinos já haviam desembarcado na outra margem, com outras pessoas..., que agora não existem mais. Vínhamos de muito longe. Porque não deixaste a cidade enquanto havia tempo? Baudolino hesitou antes de responder: porque..., porque tinha de estar aqui para entender uma coisa. E afinal a entendeste? Infelizmente sim, mas somente hoje. Outra pergunta. Por que te preocupas tanto comigo? Que mais deveria fazer um bom cristão? Mas no fundo tens razão. Bastava que te libertasse daqueles dois e que te deixasse fugir por conta própria, e todavia estou aqui junto de ti como uma sanguessuga. Senhor Nicetas, sei que és um escritor de histórias, tal como era o bispo Oto de Freising. Mas quando conheci o bispo Oto, antes dele morrer, eu era ainda um menino, e não tinha uma história, queria apenas conhecer as histórias dos outros. Agora já poderia ter minha história, porém não somente perdi tudo o que escrevi sobre meu passado, mas, ao tentar evocá-lo, minhas ideias se confundem. Não que não recorde os factos, sou incapaz de lhes dar sentido. Depois do que me aconteceu hoje, tenho que falar com alguém, senão acabarei perdendo a razão. O que te aconteceu hoje?, perguntou Nicetas, arrastando-se com dificuldade dentro d’água, era mais jovem do que Baudolino, mas a sua vida de estudioso e de cortesão deixara-o gordo, preguiçoso e fraco.
Matei um homem. Foi aquele que há praticamente quinze anos assassinou meu pai adoptivo, o melhor dos reis, o imperador Frederico. Mas Frederico morreu afogado na Cilícia! É o que todos pensam. No entanto, foi assassinado. Senhor Nicetas, tu me viste furioso, dando golpes de espada esta noite em Santa Sofia, mas saibas que em toda a minha vida jamais derramei o sangue de alguém. Sou um homem de paz. Dessa vez tive que matar, eu era a única pessoa que podia fazer justiça. Tu me contarás tudo. Mas diz-me como chegaste tão providencialmente em Santa Sofia para salvar-me a vida. Enquanto os peregrinos começavam a saquear a cidade, entrei num canto escuro. Saí ao anoitecer, uma hora atrás, e me encontrei junto do Hipódromo. Fui praticamente arrastado por uma multidão de gregos que fugiam, gritando. Corri na direcção do passadiço de uma casa parcialmente queimada, para deixá-los passar, e logo que passaram vi os peregrinos que os perseguiam. Compreendi o que estava acontecendo e, de repente, passou-me pela cabeça essa exacta verdade: que eu era um latino e não um grego, mas antes mesmo que aqueles latinos embrutecidos percebessem, não haveria qualquer diferença entre mim e um grego morto. Mas não pode ser, dizia de mim para mim, eles não vão querer destruir a maior cidade da Cristandade, justo agora que a conquistaram... Depois lembrei que, quando seus antepassados entraram em Jerusalém, nos tempos de Godofredo de Bulhão, ainda que a cidade acabasse nas suas mãos, não deixaram de matar a todos, mulheres, crianças, animais domésticos; e foi uma bênção não terem queimado por engano o Santo Sepulcro. É verdade que eram cristãos e que estavam entrando numa cidade de infiéis, mas justamente na minha viagem percebi quanto os cristãos podem esfolar uns aos outros por uma simples palavra, e como se sabe, há muitos anos os nossos padres brigavam com os vossos sobre a questão do Filioque. Mas afinal isso tudo é conversa, quando um guerreiro entra numa cidade não há religião que resista. O que fizeste, então? Saí do passadiço, seguindo rente às muralhas, até chegar ao Hipódromo. E lá vi a beleza perder o viço e tornar-se uma coisa triste. Sabes, desde que cheguei à cidade, ia até lá de vez em quando para contemplar a estátua daquela jovem, a de pés bem torneados, braços que parecem de neve e lábios vermelhos, aquele sorriso, e os seios, e as vestes e os cabelos que dançavam ao vento, de modo que, ao vê-la de longe, ninguém podia acreditar que fosse de bronze, porque parecia de carne viva...» In Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.

Cortesia de ERecord/JDACT