Cortesia
de wikipedia e jdact
O
olhar para trás
«[…]
E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio
nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de
novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de
novo arrastando negros véus...»
Rio
de Janeiro, 1935
A
uma mulher
«Quando a madrugada entrou eu
estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trémula e teu rosto
pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava
já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que
era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti
o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho
agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram
teus lábios
Eu compreendi que a morte já
estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não
perder o único instante
Em que foste realmente a ausência
de sofrimento
Em que realmente foste a
serenidade».
Rio
de Janeiro, 1933
Ilha
do Governador
«Esse ruído dentro do mar
invisível são barcos passando
Esse ei-ou que ficou nos meus
ouvidos são os pescadores esquecidos
Eles vêm remando sob o peso de
grandes mágoas
Vêm de longe e murmurando
desaparecem no escuro quieto.
De onde chega essa voz que canta
a juventude calma?
De onde sai esse som de piano
antigo sonhando a Berceuse?
Por que vieram as grandes
carroças entornando cal no barro molhado?
Os olhos de Susana eram doces mas
Eli tinha seios bonitos
Eu sofria junto de Suzana, ela
era a contemplação das tardes longas
Eli era o beijo ardente sobre a
areia húmida.
Eu me admirava horas e horas no
espelho.
Um dia mandei: Susana, esquece-me,
não sou digno de ti, sempre teu…
Depois, eu e Eli fomos andando…,
ela tremia no meu braço
Eu tremia no braço dela, os seios
dela tremiam
A noite tremia nos ei-ou dos
pescadores…
Meus amigos se chamavam Mário e
Quincas, eram humildes, não sabiam
Com eles aprendi a rachar lenha e
ir buscar conchas sonoras no mar fundo
Comigo eles aprenderam a
conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas.
Eu mostrava meus sonetos aos meus
amigos, eles mostravam os grandes
(olhos abertos
E gratos me traziam mangas
maduras roubadas nos caminhos.
Um dia eu li Alexandre Dumas e
esqueci os meus amigos.
Depois recebi um saco de mangas
Toda a afeição da ausência…
Como não lembrar essas noites
cheias de mar batendo?
Como não lembrar Susana e Eli?
Como esquecer os amigos pobres?
Eles são essa memória que é
sempre sofrimento
Vêm da noite inquieta que agora
me cobre.
São o olhar de Clara e o beijo de
Carmem
São os novos amigos, os que
roubaram luz e me trouxeram.
Como esquecer isso que foi a
primeira angústia
Se o murmúrio do mar está sempre
nos meus ouvidos
Se o barco que eu não via é a
vida passando
Se o ei-ou dos pescadores é o
gemido de angústia de todas as noites?
Rio
de Janeiro, 1935
In Vinicius de Moraes, Antologia Poética, 1954, Companhia das Letras,
2015, ISBN 978-989-877-534-4.
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