Maio.
1860
«(…) Os raios do
sol poente daquela tarde de Maio incendiavam a tez rosada e os cabelos cor de
mel do Príncipe. Eram estes que denunciavam a origem alemã de sua mãe, aquela princesa
Carolina cuja soberba, trinta anos atrás, havia enregelado a Corte um tanto
negligente das Duas Sicílias. Mas no sangue fermentavam-lhe outras essências
germânicas, e estas mais incómodas para um aristocrata siciliano, naquele ano
de 1860, de que podiam ser atraentes numa pele clara e uns cabelos loiros no
meio daquela gente de pele olivácea e cabelos negros. O seu temperamento
autoritário, uma certa rigidez moral, a sua propensão às ideias abstractas, no
ambiente moral um tanto mole da sociedade palermitana, haviam-se mudado,
respectivamente, em tirania caprichosa, perpétuos escrúpulos morais e desprezo
pelos seus parentes e amigos, os quais lhe pareciam andar à deriva nos meandros
do vagaroso rio do pragmatismo siciliano. Ele era, numa família que, durante
séculos, não havia nunca sequer sabido fazer a soma das despesas e a subtracção
das dívidas, o primeiro e último a possuir uma forte e mais que notória
inclinação para as ciências matemáticas. O Príncipe havia-as aplicado à
astronomia e, desta forma, obtido com elas razoáveis sucessos públicos e
belíssimos prazeres privados. Com efeito, a tal ponto, nele, o orgulho e a
análise matemática se tinham associado, que alimentava a ilusão de que os
astros obedeciam aos seus cálculos (como aliás pareciam fazer) e que os dois
planetas que havia descoberto (chamara-lhes Salina e Esbelto em homenagem à sua
propriedade e a um inesquecível perdigueiro) propagavam a fama da sua casa nas
estéreis plagas do céu entre Marte e Júpiter. E, assim, os frescos da villa
representariam mais uma profecia que a adulação de um pintor. Solicitado, por
um lado, pelo orgulho e intelectualismo materno, por outro, pela sensualidade e
condescendência do pai, o nobre Príncipe Fabrício vivia, sob a carranca de
Zeus, em perpétuo descontentamento, entregando-se à contemplação da ruína da
sua raça e do seu património sem dar mostras de qualquer actividade e, o que é
mais, sem tentar pôr-lhe um termo. Aquela meia hora entre o rosário e o jantar
era um dos momentos menos irritantes do dia e, horas antes, já de
antegozava-lhes a calma equívoca.
Precedido de um
Bendicó excitadíssimo, desceu a pequena escada que conduzia ao jardim.
Encerrado entre três muros e um dos lados da villa, esta clausura conferia-lhe
um ar de cemitério, acentuado ainda mais pelos montículos paralelos que ladeavam
os pequenos canais de irrigação e que lembravam túmulos de gigantes
magríssimos. Na argila avermelhada as plantas cresciam em espessa desordem; as
flores surgiam ao deus-dará e as sebes de murta pareciam ali dispostas mais
para impedir que para dirigir os passos. Ao fundo, uma Flora, manchada por
líquenes amarelo-negros, exibia, com resignação, os seus mimos mais que
seculares; de cada um dos lados um banco sustentava uma almofada bordada,
comprida e enrolada, talhada, também ela, em mármore cinzento. A um canto, o
oiro de uma acácia introduzia uma nota de alegria intempestiva. De todos
aqueles torrões emanava uma sensação de beleza depressa amortecida pela
indolência. Mas o jardim, refreado e macerado entre aquelas barreiras, exalava
perfumes untuosos, carnais, levemente pútridos, como os líquidos destilados das
relíquias de certos santos; o perfume apimentado das violetas sobrepunha-se ao
aroma convencional das rosas e ao oleoso das magnólias que se concentravam nos
cantos. Muito ao de leve, percebia-se ainda o perfume da hortelã-pimenta
misturado ao aroma infantil da acácia e ao cheiro a confeitaria da murta. O
perfume de alcova das primeiras flores das laranjeiras do pomar transbordava
por cima do outro muro. Era um jardim para cegos. A vista constantemente se
ofendia, mas o olfacto, esse, podia extrair dele um prazer violento, embora
grosseiro. As rosas Paul Neyron, cujas estacas ele próprio adquirira em Paris,
haviam degenerado. Primeiro estimuladas, depois extenuadas pelos sucos
vigorosos e indolentes das terras sicilianas, queimadas por Julhos
apocalípticos, haviam-se transformado numa espécie de couves cor de carne,
obscenas, que destilavam, porém, um aroma denso, quase desonesto, que nenhum
criador francês teria ousado esperar. O Príncipe levou uma delas ao nariz e foi
como se aspirasse a coxa de uma bailarina da Ópera. Bendicó, a quem em seguida
a ofereceu, retraiu-se nauseado e apressou-se a ir procurar sensações mais
saudáveis no meio do estrume e das lagartixas mortas.
Para o Príncipe,
porém, aquele jardim perfumado foi causa de obscuras associações de ideias. Agora,
sim, cheira bem, mas há um mês... Recordava a repugnância que as baforadas
adocicadas haviam espalhado por toda a villa antes que tivesse sido removida a
sua causa: o cadáver de um jovem soldado do Batalhão de Caçadores 5 que, ferido
na escaramuça de S. Lourenço, contra as tropas rebeldes, tinha vindo morrer,
sozinho, debaixo de um limoeiro. Haviam-no encontrado de bruços, no meio do
trevo espesso, o rosto mergulhado no sangue e nos vómitos, as unhas cravadas na
terra, coberto de formigas; sob as bandoleiras os intestinos violáceos haviam
formado uma poça de lama. Tinha sido Russo, o guarda, a encontrar aquela coisa
desfeita, a voltá-la, a cobrir-lhe o rosto com o seu lenço vermelho e, com um
pau, a meter as entranhas para dentro do rasgão do ventre e cobrir depois a
ferida com as abas azuis do capote, cuspindo continuamente de nojo, não
precisamente em cima mas bastante perto do cadáver. Tudo isto com uma
habilidade cuidadosa. O fedor destes malandros não pára nem quando estão mortos,
dizia. E fora tudo o que comemorara aquela morte solitária». In
Tomasi di Lampedusa, O Leopardo, 1958, Dom Quixote, 2014, ISBN
978-972-205-467-6.
Cortesia
de EdomQuixote/JDACT