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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Eu, Jack Gil Mascarenhas Deane,
filho de mãe portuguesa e pai inglês, nascera em Capetown, na África do Sul,
onde vivera seis anos da minha infância. Depois, seguira-se Sydney, na
Austrália, até aos 15. Novos projectos do meu pai e nova viagem, até Hong Kong,
onde permaneci até aos 25, antes de vir para Portugal. Conhecera ao longo da
vida muitas mulheres: criadas, secretárias e até amantes do meu pai. Mais
tarde, vieram as prostitutas e as colegas da universidade. Tinha, pensava, um
suficiente conhecimento dos temperamentos femininos. Mas estava errado. Em
1941, nunca conhecera uma mulher como Mary, nunca uma mulher me falara assim,
em desafio, com hostilidade, pondo em causa a minha coragem, o meu orgulho
patriótico, o meu carácter. Estava perfeitamente siderado, paralisado pela sua contundência
verbal. Estás sem palavras, inglês?, insistiu ela. A tua diplomacia, a tua
educação, não te dizem como responder? O que é preciso para te fazer
estremecer? Meu Deus, pareces um figurante do teatro!
Mary estava, definitivamente,
lançada. Não sabia o que despertara aquela explosão, e não sabia como contê-la.
Fiquei ali, a olhar para ela, sem palavras. Seria aquilo um teste, a sua estratégia
de recrutamento? Mary encolheu os ombros, decepcionada: só me saem destes...
Achas que, se eu quisesse vir sozinha para casa, não tinha chamado um táxi? Meses
mais tarde, estas estranhas mudanças de temperamento de Mary, os seus arranques
como eu lhes chamava, tornaram-se compreensíveis para mim. Quanto mais a sua
vida e a de James Bowles se iam tornando perigosas em Lisboa, mais instável ela
ficava.
Mas, naquela primeira noite, a
forma desabrida como me falou pareceu-me conversa de desmiolada e bêbada. Mary,
perguntei, o que foi que eu disse que te incomodou tanto? Ela deu uma gargalhada
histérica: oh!, sempre um cavalheiro, e imitou a minha voz. Mary, o que foi que
eu disse que te incomodou tanto? Depois, regressou ao seu tom impulsivo,
hostil, agressivo: acorda, Jack Gil! Estamos em guerra! Na guerra não há
cavalheiros, só homens duros e maus. Homens que atiram bombas para cima de
cidades! Homens que querem matar nazis!
Diz-me, cavalheiro Jack Gil,
porque é que não foste à guerra? Debrucei-me para a frente no sofá e
expliquei-lhe: já tenho 30 anos, não fui chamado. Além de que sou filho de mãe
portuguesa. Ela fez um gesto de desprezo com a mão: logo vi. És um cobardolas,
imitou-me de novo. Sou filho de mãe portuguesa. Os nossos rapazes a sangrarem
nas areias dos desertos de África, os pilotos da RAF a caírem como patos
mortalmente atingidos e tu, sou filho de mãe portuguesa, já tenho 30 anos. Piff,
bem diz o James que a nossa fibra se está a perder. Os nazis não pensam assim,
sabes? O Hitler diz-lhes para eles se atirarem a nós e eles fazem-no, pelo
Terceiro Reich! E tu: tenho 30 anos, não fui chamado. Não tens vergonha?
Uns anos antes, o meu pai
dissera-me o mesmo. Queria que eu fosse para Inglaterra alistar-me na Royal
Navy. Recusei. Preferia os bordéis de Hong Kong e mais tarde o Casino do Estoril.
Morrer não era ideia que me agradasse, mesmo que fosse pela pátria. Só que,
agora que a guerra estava no auge, consumia-me um sentimento de culpa. Sentado
atrás de uma mesa de mogno no escritório da companhia de navegação do meu pai,
numa rua próxima do Cais do Sodré, não contribuía em nada para mudar o curso
daquela guerra estúpida. Muitas vezes perguntara a mim próprio o que poderia
fazer, mas nada me ocorria. Perante o desafio de Mary, sentira-me por momentos
útil. Ouvir estas palavras, cruéis mas certeiras, irritava-me e explodi: Mary,
disse há pouco que te ia ajudar, que ia falar com o Nubar! Porque me estás a humilhar?
Sim, não me alistei! Sim, nunca fiz o que o meu pai me pediu, ir para
Inglaterra lutar! Mas isso já é passado! Agora, aqui em Lisboa, estou pronto
para ajudar a Inglaterra nesta guerra!
Ela escarneceu de mim: olha, de
repente temos herói. Vai falar com uma pessoa num hotel chique de Lisboa e já
diz que está pronto para ajudar a Inglaterra nesta guerra! Que nobre, que
digno! Pobre Jack Gil. Bem vestido, anda de Citroen, noivo de uma portuguesinha
de boa família, amiga de Salazar.
Ofendido, esbocei o gesto de me
levantar do sofá. Mary murmurou, sibilina: ó pobrezinho, queres ver que o
magoei? Falei na noivinha... Gritou, como uma mãe berra à criança que praticou
um disparate: pára de te portares como um palerma, Jack Gil! Age como um homem,
responde-me à letra, e não te ponhas para aí com delicadezas!
Talvez fosse isso que Mary
quisesse, que eu entrasse num combate verbal com ela. E confesso que, embora à
superfície aquela verborreia me estivesse a incomodar, aqueles termos
provocavam em mim alvoroço. Era como se a trepidação que emanava dela me estivesse
a acordar energias, como se um redemoinho me puxasse, e sentia vontade de lhe ripostar,
de a agredir de volta. Foi o que fiz.
Mary, já me tinham dito que eras
uma cabra.
Um insulto. Em 1941, as pessoas
não usavam tanto os palavrões como usam hoje, quando já os banalizaram. Em 41,
um insulto era uma coisa grave. Contudo, ao longo da vida fui compreendendo que
a atracção sexual entre homens e mulheres é cheia de mistérios, e um deles é
que os insultos entre seres que se desejam são por vezes naturais. Trata-se de actos
drásticos, destinados a despertar o irracional das pessoas, o seu lado mais
violento, apaixonado e animal.
Ah! Ah, Ah! Cabra? Chamaste-me
cabra? Ora querem lá ver que afinal não és só salamaleques! Mary levantou o
copo e disse: brindemos a isso! À cabra! Vá lá, inglês, filho de mãe
portuguesa, bebe um copo à saúde desta cabra maluca! Depois, sorriu com malícia
e perguntou: também dizes palavrões durante o sexo? Julgo que corei, pois ela
apontou imediatamente o dedo para a minha cara e gritou: estás a corar! Jack
Gil, tu dizes palavrões durante o sexo! Tu, o atencioso, o cavalheiro, o noivinho,
dizes palavrões durante o sexo! Por instantes, o verniz da civilização era um
porto seguro, aonde eu queria regressar desesperadamente. Estava enervado e
inseguro. Mas, ao mesmo tempo, desejava possuí-la. O que é que tu lhes chamas,
inglês filho de mãe portuguesa?, perguntou. O que é que dizes às mulheres
quando lhes falas ao ouvido? Vá lá, Jack Gil! Se vamos trabalhar juntos temos
de confiar um no outro. O que é que lhes dizes? Que obscenidades? Então, pela
primeira vez na vida, contei a uma mulher o que dizia às outras mulheres quando
as possuía». In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras,
2013, ISBN 978-972-462-174-6.
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