«Dos vários personagens que conheci naqueles estranhos dias, o rapaz foi curiosamente o primeiro que vi. Cruzámos os nossos destinos logo na primeira manhã, e quando falei com ele já sabia o que tinha feito, a coragem que revelara. Hoje, tenho pena de não o ter elogiado. Talvez as coisas tivessem sido diferentes, talvez tivesse olhado para mim com outros olhos. Mas não foi assim e não há nada que possa fazer para mudar a história. O rapaz estava ainda próximo da arruinada Igreja de São Vicente de Fora quando se deu o terceiro abalo. Embora determinado a procurar a irmã, não lhe fora fácil atravessar aquele descalabro. Não existiam ruas, nem casas, nem prédios onde antes tinham existido. Quando a nuvem de poeira levantou, viu no meio daquela irrespirável bruma o Castelo de São Jorge e mais em baixo a Sé, e foi assim que se orientou em direcção a sua casa, próxima da Igreja da Madalena.
Naquelas circunstâncias, andar
era difícil: havia fendas inesperadas e fundos precipícios no terreno; as ruas
apresentavam-se impedidas, atulhadas de pedras. Demorou a aproximar-se do
Castelo e das suas muralhas. Os mortos atapetavam o chão, em posições
complexas, semelhantes a estátuas esculpidas por desvairados. As pessoas
corriam, atarantadas, como as crianças perdidas, aos berros.
O rapaz prosseguiu, determinado.
Próximo da Graça, uma pequena multidão observava o Rossio, em baixo, e a colina
oposta, do Bairro Alto. Nada era como tinha sido. A cidade abatera, como que
deitando-se no chão, e nem os seus edifícios mais simbólicos haviam escapado.
Na praça, o Hospital de Todos-os-Santos era o único que parecia intacto,
mas ao seu lado tanto o Convento de São Domingos, como o Palácio da Inquisição,
haviam sido fortemente atingidos.
Na encosta do Castelo de São
Jorge e mesmo em Alfama, o rapaz também só via desolação, e perguntou a si
próprio o que teriam feito para merecer tal castigo, mas não encontrou razão.
Por isso, cessou de procurar motivos e continuou a descer para a Sé, e com ele
desciam muitas pessoas que tinham subido para as festas em São Vicente de Fora
e agora regressavam às suas casas. Eram já pessoas diferentes, mudadas para
sempre, partidas por dentro, cheias de mágoa e desespero e medo do futuro.
Tinham ido encontrar-se com Deus naquele feriado e haviam sido massacradas de
uma forma inimaginável.
Ao passar perto da Sé ouviu
tiros. Deviam ter fugido prisioneiros do Limoeiro e os soldados tentavam
abatê-los, foi a sua conclusão, e decidiu ter precaução, receando ser apanhado
no fogo cruzado dos confrontos. Algumas casas tinham ficado intactas, bem como
a Sé, que, orgulhosa, apenas mostrava os flancos danificados.
Foi então que, mesmo à sua
frente, viu três homens a saírem de uma casa. Arrastavam um desgraçado,
provavelmente o proprietário. Atiraram-no ao chão e deram-lhe um tiro,
abatendo-o. O rapaz escondeu-se atrás de um monte de pedras e ficou a observar.
Um dos homens, mais alto do que os outros dois, parecia ser o chefe. O seu
cabelo e as suas barbas eram negros e dos seus olhos e dos seus gestos emanava
uma energia maligna. Vasculhou os bolsos do proprietário e retirou um relógio.
Depois, os três bandidos reentraram dentro da casa e ouviram-se mais gritos,
seguidos de um silêncio mais assustador do que o barulho.
O rapaz aproveitou o momento e
recomeçou a andar, mas foi surpreendido pelo regresso abrupto do homem mais
alto, que se dirigiu ao morto. O rapaz sentiu medo. O grandalhão observou-o,
enquanto vasculhava as roupas do defunto. Sorriu quando encontrou uma chave e
depois perguntou ao rapaz: Qué passa? O rapaz não respondeu, mas percebeu que o
ladrão era espanhol. Um dos seus companheiros saiu também de casa, trazendo uma
mulher pelos cabelos, que implorava: Não, não, por favor, não! O homem enorme olhou para o rapaz e riu-se, e
depois perguntou: Hay visto una mujer morrer? O rapaz respondeu: Sim. A minha
mãe. O energúmeno soltou uma gargalhada e perguntou-lhe: Como hay morrido tu pobre
madre? O rapaz contou-lhe: Morreu lá em cima, em São Vicente de Fora, na
igreja. Executando uma mímica maldosa, o bisonte benzeu-se e murmurou: Paz à su
alma... Pero, esta vai gozar mucho más que tu madre... Aproximou-se da mulher,
agarrou-a pela nuca e depois ordenou ao seu subordinado: Leva-la!!!
O outro riu e acatou a ordem, mas
antes aconselhou-o, apontando na direcção do rapaz: Matá-lo. Muertos no hablam
con soldados... O homem mais alto deu nova gargalhada, aproximou-se do rapaz e
perguntou: Chico, quieres morrer? O rapaz disse que não. O matodonte agarrou-o
pelo cachaço, levou a mão ao cinto e empunhou uma faca, que depois lhe encostou
à garganta. A mi me gustan los chicos... Apesar do medo, o rapaz disse: Eu só
queria água... O cafageste, ao ouvir falar em água, pensou uns segundos.
Sabes onde hai água? O rapaz
respondeu: Há uma fonte numa rua, ali por detrás daquelas casas... Fazendo uma
careta assustadora, o salafrário ameaçou-o novamente: Se my mientes, te arranco
el corazón com los dientes... Não, gemeu o rapaz, é verdade, há água ali. O Cão
Negro libertou-o e ordenou: Vien. Entraram os dois dentro de casa. No meio da
sala, em cima de um sofá, a mulher estava deitada de costas, com as saias
levantadas, e um dos outros espanhóis, já com as calças a meio dos joelhos,
preparava-se para penetrá-la.
Ei
cabrón, gritou o Cão Negro. O companheiro voltou-se para trás, aflito, e riu
nervosamente. Ei, Cã Niegro, también tenemos derecho... O chefe ergueu-lhe o
punho à frente dos olhos e perguntou: Quien manda? Tu. Entonces, sou yo lo
primero. O Cão Negro baixou as calças enquanto o outro se afastava um pouco. O
rapaz assistiu aos seus actos. A mulher chorava; e depois do chefe veio o homem
que ele afastara, e depois o terceiro homem praticou o mesmo acto, sempre com
ela a chorar. O rapaz não podia fazer nada e quando aquilo acabou estava com
medo que o quisessem a ele, mas nenhum dos três o quis. O Cão Negro proclamou
que ela ainda aguentava outra rodada geral, e todos se riram muito e só depois
se lembraram do rapaz, e o Cão Negro mandou-o procurar um jarro, ou uma panela grande,
para ir buscar água à fonte, acompanhado por um dos espanhóis». In Domingos Amaral,
Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida
de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN
978-972-461-986-6.
Cortesia de CdasLetras/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, Lisboa, Terramoto de 1755, Conhecimento,