O Breviário
«A
sua desconfiança tinha fundamento, pois que sendo preso o pescador meteram-no a
tormento e ao primeiro trato confessou o que se passara, denunciando os seus
três outros cúmplices. Céus! Ainda hoje tremo de horror e de compaixão a pensar
nisso! Alguém havia comprado aqueles homens para matarem um tal frade franciscano
que trazia na mão um breviário de couro com cantos de prata e letras de ouro.
Pietro e Bertino, não sei qual dos dois pegou por inadvertência no meu
breviário. Isto me salvou a vida e custou a deles, porque saindo a terra para
se recrearem dos enfados do mar foram aliciados por aqueles homens a irem
visitar umas furnas que eles diziam ser muito formosas e ter uma imagem de
nosso padre São Francisco feita na rocha viva muito tempo antes de ele ter
vindo ao mundo. Tão grande maravilha foi o suficiente para convencer a boa-fé
dos dois pobres frades. Uma vez nas furnas escondidas, ataram-nos de mãos e
pés, mataram-nos com pancadas e lançaram-nos ao mar, com enormes pedras para os
corpos não mais poderem aparecer... Mas a justiça humana não consentia em perdoar-se
tão grande crime!, e o meirinho, apontava, na costa não muito distante de nós,
um morro onde se viam baloiçando sinistramente ao vento quatro corpos pendurados
pelo pescoço em suas forcas. Só faltava apanhar um, que parecia ter sido o
chefe, um tal Argirópolos. Mas ninguém mais lhe deitara a vista em cima!, juntei
minhas lágrimas às de Signor Nicolló e durante dias não saí do meu camarote nem
tomei refeição, tão deprimido andava. Não era medo, por mim. Nem nisso tinha
ainda pensado, de tal maneira me obcecava a visão dos meus pobres companheiros
mortos. Foi o próprio patrão que desceu a buscar-me para comer à sua mesa e quase
me obrigou de sua força: Era pecado mortal o suicídio. E que coisa era senão
isso que andava a fazer frei Pantaleão?
Rezasse
pelas almas de meus irmãos,
mas cumprisse, enquanto peregrinava neste vale de lágrimas, a minha missão com
alegria. Passava longas horas esquecidas na amurada, sozinho, alheado,
adormecido, vendo a quilha do barco cortando monotonamente a água. Já íamos
muito longe de terra, Undia ficara para trás, passáramos Escarpanto e estávamos
navegando pelo grande golfo de Satália, felizmente com vento próspero e
amigável de poente, o que nos movia a de continuo darmos graças a Deus, porque,
segundo nos afirmavam, é raríssimo passar-se ali, especialmente no Inverno, sem
algum enfadamento dos navegantes e muitas vezes se têm perdido as naus.
Antigamente...,
dizia-me um passageiro grego que se viera postar junto de mim, que bem sentia o
esforço que todos faziam para me arrancarem ao meu acabrunhamento. Num barco
tudo se sabe e aquela tragédia, além de contristar toda a gente, fez incidir
sobre mim uma especial áurea que o suspeitado mistério que me rodeava acrescia
de um vago temor e acatado respeito, este golfo era ainda mais perigoso do que
ao presente porque, com as tempestades, andava aqui um dragão marinho, muito
grande e espantoso, que subvertia as embarcações. Andou aqui, era agora, do
outro lado de mim, a voz de frei Zedilho, que também viera fazer-me companhia
para me distrair, até ao tempo de Santa Helena, mãe do imperador Constantino.
Passando
ela um dia por aqui, lançou ao mar um dos cravos com que o Redentor foi pregado
na cruz e desde então nunca mais o dragão apareceu. Terra à vista!, gritou do
alto da gávea um marinheiro e logo de todos os lados ocorreu gente a olhar ao
longe uma ténue mancha que no horizonte começava a sombrear-se. É Chipre!,
dizia alguém próximo de mim. Daí a pouco via-se nitidamente o monte Tróodos,
dominando com sua grande altitude aquela parte da ilha, dele escorrendo em
leque inúmeros contrafortes entre que se cavavam talhados sombrios e
exuberantes.
Muito perto da ilha sobreveio um
vento sul muito áspero e desumano, que nos afligiu a todos e desconsolou, que
nisto param de ordinário todas as coisas de vida. Mas pudemo-nos remediar,
porque, navegando muito junto a terra, fomos ao longo dela, deixando nosso
direito caminho, e tomámos porto a pouco menos de meia légua da cidade de Pafo.
Lançada âncora, saíram a terra alguns passageiros naturais da ilha. Frei
Zedilho e eu fizemos-lhes companhia e fomos ter à cidade». In Fernando Campos, A Casa do Pó,
Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,