«Acostume-se a me ver aqui, porque daqui não se pode ir mais para baixo, o que é uma vantagem na hora de tomar decisões, deveríamos tomá-las a partir das piores hipóteses, se é que não do desespero e sua acompanhante habitual, a vileza, assim não amoleceríamos nem reconheceríamos um equívoco.
Não se preocupe e sente-se, vou
ditar-te uma coisa ou duas. E deixe de lado de uma vez por todas o dom, não é a
primeira vez que digo. Eduardo, imitou minha voz, e era um grande imitador, me
envelhece e me soa a Galdós, que não suporto com duas excepções, e isso numa
obra tão abusiva o converte num déspota. Vamos, anote. Vai ditar-me daí? Daí de
baixo? Sim, daqui, qual o problema? Por acaso minha voz não chega até você? Não
me diga que tenho de te levar ao otorrino, seria um péssimo indício na sua
idade. Quantos anos acha que tem? Quinze?. Também era dado a gozações e ao
exagero.
Vinte e três. Sim, claro que sua
voz chega até mim. É potente e viril, como o senhor sabe. Eu não as iniciava
apenas: toda a vez que Muriel me fazia uma piada, eu a devolvia, ou pelo menos
lhe respondia no mesmo tom de troça. Tornou a sorrir sem querer, mais com o olho
do que com os lábios. Mas não verei o seu rosto se eu me sentar no meu lugar.
Ficarei de costas para o senhor, uma descortesia, não? Eu costumava ocupar uma
poltrona em frente à dele quando despachávamos, com sua mesa de trabalho
setecentista de permeio, e ele estava estendido perto do limiar do salão, mais
além dessa minha poltrona.
Pois vire a poltrona, coloque-a
voltada para mim. Grande coisa, que problema! Nem se estivesse aparafusada no
chão. Ele tinha razão, assim fiz. Agora ele ficava literalmente a meus pés, em
sentido perpendicular a eles; como composição era excêntrica, o chefe
horizontal no chão e o secretário, ou o que quer que eu fosse, a um palmo de
lhe dar um pontapé ao menor movimento involuntário e brusco ou mal medido de
suas pernas, nas costelas ou nos quadris. Me preparei para escrever na minha caderneta
(depois passava as cartas numa máquina velha que ele me tinha emprestado, ainda
funcionava bem, e lhe dava para rever e assinar).
Mas Muriel não começou de
imediato. Sua expressão de pouco antes, mais para o afável, dissimuladamente risonha,
havia sido substituída por uma de abstração ou de elucidação, ou por uma dessas
coisas pesadas que você vai adiando porque não deseja enfrentá-las nem mergulhar
nelas e que, portanto, sempre voltam, recorrentes e, a cada investida, são mais
profundas por não terem desaparecido durante o período em que você as manteve
sob controle ou afastadas do pensamento, mas porque, por assim dizer, cresceram
em ausência e não pararam de espreitar o ânimo, sub-reptícia ou subterraneamente,
como se fossem o preâmbulo de um abandono amoroso que você acabará consumando,
mas que ainda não consegue sequer imaginar: essas ondas de frieza e irritação e
saciedade dirigidas a um ser muito querido que vêm, se entretêm um pouco e se vão,
e toda vez que se vão você deseja crer que sua visita foi uma fantasmagoria, produto
do mal-estar consigo mesmo, ou de um descontentamento geral, ou mesmo das contrariedades
ou do calor, e que não voltarão mais.
Só para descobrir na próxima vez
que cada nova onda é mais pegajosa e traz consigo uma duração maior e envenena
e abruma o espírito e o faz duvidar e se amaldiçoar um pouco mais. Demora a se
perfilar esse sentimento de desafeição, e ainda mais a se formular na mente (acho
que não a aguento mais, vou fechar a porta para ela, tem de ser assim), e
quando a consciência por fim o assume, ainda lhe resta um bom caminho a
percorrer antes de ser verbalizado e exposto à pessoa que sofrerá o abandono e
que não suspeita dele nem o prefigura, porque tampouco nós, os abandonadores, o
fazemos, enganosos, covardes, dilatórios, morosos, pretendemos coisas impossíveis:
eludir a culpa, evitar o dano, e a quem caberá enlanguescer incredulamente por
ele e quem sabe morrer em sua palidez». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015,
Afaguara, ISBN 978-989-665-008-7.
Cortesia de Alfaguara/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura,