Que o Medo os Retraia do delito (1492-1594)
«Aos 23 dias de Fevereiro do ano do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo de 1597, o quinto dia do mês de Adarde
5357, no calendário judaico, um friorento domingo de Inverno, Gaspar Rodrigues
Nunes, 39 anos, comerciante com negócio instalado próximo ao Arco dos Pregos,
pórtico de pedra da antiga muralha medieval de Lisboa, constava do grupo de
noventa penitentes obrigados a envergar o traje da infâmia, a marca da desonra.
A túnica de linho tingido de amarelo sem golas ou mangas, com meras aberturas
para a cabeça e os braços, o chamado sambenito (corruptela provável de saccus benedictus,
saco bendito) era o sinal imposto pela Inquisição (maldita) para
identificar os hereges, os blasfemos, os apóstatas, os bígamos, os devassos, os
sodomitas e, sobretudo, os que haviam atentado contra a fé em Cristo ao
professar o judaísmo.
Uma forma de distinguir e apartar os
perversos, as almas desviadas do rebanho de Deus, do convívio com os ditos bons
cristãos e homens de bem do reino. Separar, a partir daquele momento e para
todo o sempre, os que andam nas trevas dos que caminham na luz. Pela exibição
ostensiva de suas culpas, os infiéis seriam expostos ao escárnio e ao desprezo
dos considerados puros de coração. Quid enim magis persequitu vitam bonorum quam vita
iniquinorum? Que coisa persegue mais a vida dos bons que a
maldade dos maus?, indagava, em sermões, Afonso de Castelo Branco, bispo de
Coimbra.
Na penumbra, antes dos primeiros raios da
manhã, Gaspar e os demais sentenciados foram postos a caminhar em fila, pés
descalços e velas amarelas nas mãos, cada um deles ladeado por dois servidores
do Tribunal do Santo Ofício. À frente do grupo iam os frades dominicanos com
seus hábitos brancos e negros,
trazendo o estandarte da Inquisição (maldita), no
qual constavam a cruz de madeira, símbolo da cristandade; a espada, distintivo
do castigo contra os ímpios; e o ramo de oliveira, insígnia da benevolência com
os pecadores arrependidos. Misericórdia e justiça, lia-se, a propósito, na
divisa bordada às margens da flâmula.
Num cortejo subsequente à procissão dos
condenados, planeado para sublinhar a autodeclarada dignidade de seus
componentes, seguia a tropa de comissários do Santo Ofício, alguns à sela de
cavalos ornamentados com penachos e arreios solenes. Abriam passagem para os
mais altos dignitários da instituição, bem como para os juízes dos tribunais
seculares e, por fim, para o inquisidor-geral, António Matos Noronha, por mercê
de Deus e da Santa Igreja de Roma, bispo de Elvas,, gorro negro à cabeça,
escoltado à luz de tochas empunhadas por nobres de destacada linhagem.
A fileira humana na qual marchava o
inditoso Gaspar Rodrigues tinha início na saída dos cárceres do Tribunal, no
Palácio dos Estaus, prédio mandado erguer em 1449 para albergar membros e
convidados da corte, mas que desde 1571 servia
de sede à Inquisição. Da praça do Rossio, a malta atravessou ruas e esplanadas
centrais da cidade, sob os apupos e chacotas dirigidos pelos populares, até
chegar ao Terreiro do Paço, defronte ao palácio real, junto ao Tejo. Ali, havia sido armado um cadafalso de madeira,
estrutura em forma de palco flanqueada por um conjunto de arquibancadas,
reservadas aos sentenciados. À margem do quadrilátero, espalhada por toda a
redondeza, uma multidão aguardava, excitada, a chegada do préstito ao lugar no
qual seria celebrada a sequência do auto de fé, ritual maior da Inquisição,
evento carregado de simbologias encenadas de modo minucioso para despertar
sentimentos de respeito, admiração e temor. Parece muito aceitado celebrar essa
solenidade nos dias festivos, sendo proveitoso que muita gente presencie o
suplício e o tormento dos réus para que o medo os retraia do delito, previa o Directorium inquisitorum, o Manual
dos inquisidores.
O vozerio do populacho era entrecortado
pelo repicar dos sinos das igrejas, pelo estrépito das matracas e pelo entoar
contínuo de cânticos religiosos, a exemplo do
Te Deum laudamus (Nós te louvamos, Senhor) e o Veni Creator Spiritus
(Vem, espírito criador), sobreposição
de sons que conferia uma atmosfera ainda mais fragorosa ao espectáculo, a essa
altura já iluminado pelo lusco-fusco do alvorecer.
Era costume o próprio rei, sentado ao lado
da rainha e dos filhos, assistir à cerimónia do alto das janelas do palácio,
convertidas em camarotes. Porém, havia dezasseis anos isso não ocorria, pois
desde 1581 Portugal passara a ser governado pelo monarca espanhol, Filipe II, decorrência
da União Ibérica, instituída após a crise dinástica provocada pelo trágico
desaparecimento do jovem Sebastião na batalha contra os mouros nas areias do
Marrocos. Com Filipe II governando a partir de Madrid, os
lugares da sacada real, durante os autos de fé realizados em Lisboa, passaram a
ser honrados pela assistência do Conselho de Governadores do Reino». In
Lira Neto, Arrancados da Terra, Penguin Random, chancela Objectiva, 2021, ISBN
978-989-784-257-3.
Cortesia de PenguinRandom/Objectiva/JDACT
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