quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos»

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O Breviário

«Assim, celebrámos a missa do dia no convés da nau, com muita solenidade e festa e deu-nos a bênção episcopal um sacerdote maronita chamado Jorge, arcebispo de Damasco, que embarcara connosco em Veneza. Enviara-o a Roma o patriarca dos maronitas do monte Líbano, Moisés, com o fim de assistir ao Concilio de Trento. Pio IV, porém, embora o tenha recebido com mostras de paternal amor, não acede a enviá-lo ao concílio, visto ele não saber latim e conhecer deficientemente o italiano. Pelo contrário faz o arcebispo portador de uma carta de Setembro atrás passado, para o patriarca Moisés, em que, explicando isto mesmo, afirma que será bastante que o patriarca escreva, tão depressa quando possível, uma declaração de como ele, os seus sufragâneos e o seu clero testificam e aproveitam, tal como o fez o patriarca assírio Abdisu, que recentemente estivera em Roma, os decretos emanados do Concílio Tridentino, aprovando tudo o que este aprovar e condenando tudo o que este condenar. Quer dizer, Sua Santidade, não confiando muito na cultura do seu patriarca de monte Líbano, na sua carta enviava-lhe a minuta da que ele lhe deverá escrever de seu punho.

Era eu muito familiarizado com frei Jorge, por o haver conhecido e ajudado quando estava na Cúria romana. Daí que não seja de estranhar conhecer eu todos estes pormenores, bem como o ter gasto toda essa manhã, antes da missa, a ensinar ao bispo como havia de proceder ao dar-nos sua santa bênção em latim, ao nosso modo, recomendando-lhe que se paramentasse com aquele magnífico pontifical com que Sua Santidade presenteara o seu patriarca. In nomine Patris..., repetia eu pela centésima vez. Mas ele, de ouvido duro: Mè nè Pàtros... In nomine Patris et Filii... Mè nè Fílios...

Com muita paciência lá o fui ensinando como pude e, cuidando que não havia mais que fazer, dispusemo-nos a assistir à missa. Quando esta acabou, julgando eu que ele ia aparecer de pontifical e mitra, pôs-se no altar com uma grande trufa na cabeça à maneira de turco, em lugar de mitra, e sem mais adiutorium nostrorum nos lançou a todos uma rasgada e soleníssima bênção, dizendo em alta voz: Ménós Pátras, ménós Filiós, ménós Spírítós Sanctós. Foi um fungar de risos mal contidos e algumas risotas um tanto descaradas, mas o arcebispo estava tão radiante que nada notou.

Aquele dia houve banquete a bordo, oferecido pelo patrão da nau a todos quantos nela iam e também aos patrões e pilotos das outras naus. Tinham os homens da montanha vindo ao barco, no dia anterior, vender muita caça, e frei Zedilho, sem me dar conta, fez pagar uns quatro ou cinco leitões, porque o escrivão de bordo levava ordens para pagar tudo o que nos fosse necessário até sairmos em Chipre. Mandou aquentar água para os pelar e, com um moço que na nau estava ao nosso serviço, pôs-se, desatinadamente e por festa, a degolar os inocentes. Ainda que no mar, havia quase dois meses que guardávamos jejum, por ser Advento e nossa regra assim nos obrigar. Também o guardam os Gregos e foi isso que extremamente escandalizou, pois são supersticiosos, uns quantos que vinham na nau entre os passageiros. Levantou-se um murmúrio tal e palavras tão desconcertadas que frei Zedilho, sentindo-se, desatou a chorar. Estava eu em baixo, no camarote, a ler um sermonário de São Vicente Férrer. Apesar de não ser pregador, muito o estimava, com o seu tão santíssimo o bona gens, quando o meu companheiro me aparece lavado em lágrimas

Que é isso, irmão? Com a voz embargada lá me foi contando o sucedido. Acudo eu logo acima à coberta a repreender os gregos: Mas que supersticioso desaforo e desaustinada insensatez era aquela?, disparei eu, influenciado pela eloquente leitura do sermonário. Não matavam os seus sacerdotes as pulgas e os piolhos quando lhes mordiam? Claro que sim! Então que diferença faziam as almas e os espíritos de pulgas e piolhos das dos porcos?

Interditos com uma pergunta tão simples e sem saída, não sabendo que me responder, acabaram por pedir desculpas a frei Zedilho, e retiraram-se. Irmão Zedílho, lhe disse eu, quando ficámos sós, o que não é honesto fazer-se entre católicos não será bem fazer-se entre cismáticos e demais gregos, tão preconceituosos. Mea culpa, irmão Pantaleão! Decorria o banquete com muita alegria, risos, conversa animada e boa disposição de todos, quando de terra veio um batel que trazia uns como que meirinhos ou justiças-mores do lugar. Logo procuraram o patrão e durante algum tempo falaram com ele à puridade, Um moço veio ter comigo: Que o patrão me mandava chamar. Levantei-me imediatamente e segui o moço. No seu camarote o patrão, sentado a uma mesa, tinha a cabeça entre as mãos e chorava. Os dois oficiais de justiça estavam de pé junto dele. Depois de um pequeno cumprimento de cabeça, um deles perguntou-me: Sois frei Pantaleão? Acenei que sim. Podeis mostrar-me o vosso breviário? Posso mostrar-vos, respondi, tirando do bolso o breviário em que inadvertidamente pegara - aquele que comigo trago e que, por engano, troquei com o de algum companheiro.

Como é o vosso? Tem uma encadernação invulgar de carneira castanha, cantos de prata, letras gravadas a ouro. Que sabeis dele? É livro que tenho em muita estima e bem me pesaria perdê-lo. Este?, e mostrava-mo. Meu Deus!, exclamei eu, pegando nele e tumultuando-me na cabeça não sei que pensamentos sestros e suspeitas. Onde o encontrastes? Que um livreiro da cidade de Cândia, ao norte, o mesmo nome da ilha, sabia? Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,