O Breviário
«Assim,
celebrámos a missa do dia no convés da nau, com muita solenidade e festa e
deu-nos a bênção episcopal um sacerdote maronita chamado Jorge, arcebispo de
Damasco, que embarcara connosco em Veneza. Enviara-o a Roma o patriarca dos
maronitas do monte Líbano, Moisés, com o fim de assistir ao Concilio de Trento.
Pio IV, porém, embora o tenha recebido com mostras de paternal amor, não acede
a enviá-lo ao concílio, visto ele não saber latim e conhecer deficientemente o
italiano. Pelo contrário faz o arcebispo portador de uma carta de Setembro
atrás passado, para o patriarca Moisés, em que, explicando isto mesmo, afirma
que será bastante que o patriarca escreva, tão depressa quando possível, uma
declaração de como ele, os seus sufragâneos e o seu clero testificam e
aproveitam, tal como o fez o patriarca assírio Abdisu, que recentemente
estivera em Roma, os decretos emanados do Concílio Tridentino, aprovando tudo o
que este aprovar e condenando tudo o que este condenar. Quer dizer, Sua
Santidade, não confiando muito na cultura do seu patriarca de monte Líbano, na
sua carta enviava-lhe a minuta da que ele lhe deverá escrever de seu punho.
Era
eu muito familiarizado com frei Jorge, por o haver conhecido e ajudado quando
estava na Cúria romana. Daí que não seja de estranhar conhecer eu todos estes
pormenores, bem como o ter gasto toda essa manhã, antes da missa, a ensinar ao
bispo como havia de proceder ao dar-nos sua santa bênção em latim, ao nosso
modo, recomendando-lhe que se paramentasse com aquele magnífico pontifical com
que Sua Santidade presenteara o seu patriarca. In nomine Patris...,
repetia eu pela centésima vez. Mas ele, de ouvido duro: Mè nè Pàtros... In
nomine Patris et Filii... Mè nè Fílios...
Com
muita paciência lá o fui ensinando como pude e, cuidando que não havia mais que
fazer, dispusemo-nos a assistir à missa. Quando esta acabou, julgando eu que
ele ia aparecer de pontifical e mitra, pôs-se no altar com uma grande trufa na
cabeça à maneira de turco, em lugar de mitra, e sem mais adiutorium nostrorum nos
lançou a todos uma rasgada e soleníssima bênção, dizendo em alta voz: Ménós
Pátras, ménós Filiós, ménós Spírítós Sanctós. Foi um fungar de risos mal
contidos e algumas risotas um tanto descaradas, mas o arcebispo estava tão
radiante que nada notou.
Aquele
dia houve banquete a bordo, oferecido pelo patrão da nau a todos quantos nela
iam e também aos patrões e pilotos das outras naus. Tinham os homens da
montanha vindo ao barco, no dia anterior, vender muita caça, e frei Zedilho,
sem me dar conta, fez pagar uns quatro ou cinco leitões, porque o escrivão de
bordo levava ordens para pagar tudo o que nos fosse necessário até sairmos em
Chipre. Mandou aquentar água para os pelar e, com um moço que na nau estava ao
nosso serviço, pôs-se, desatinadamente e por festa, a degolar os inocentes.
Ainda que no mar, havia quase dois meses que guardávamos jejum, por ser Advento
e nossa regra assim nos obrigar. Também o guardam os Gregos e foi isso que
extremamente escandalizou, pois são supersticiosos, uns quantos que vinham na
nau entre os passageiros. Levantou-se um murmúrio tal e palavras tão
desconcertadas que frei Zedilho, sentindo-se, desatou a chorar. Estava eu em
baixo, no camarote, a ler um sermonário de São Vicente Férrer. Apesar de não
ser pregador, muito o estimava, com o seu tão santíssimo o bona gens, quando o meu
companheiro me aparece lavado em lágrimas
Que
é isso, irmão? Com a voz embargada lá me foi contando o sucedido. Acudo eu logo
acima à coberta a repreender os gregos: Mas que supersticioso desaforo e
desaustinada insensatez era aquela?, disparei eu, influenciado pela eloquente
leitura do sermonário. Não matavam os seus sacerdotes as pulgas e os piolhos
quando lhes mordiam? Claro que sim! Então que diferença faziam as almas e os
espíritos de pulgas e piolhos das dos porcos?
Interditos
com uma pergunta tão simples e sem saída, não sabendo que me responder, acabaram
por pedir desculpas a frei Zedilho, e retiraram-se. Irmão Zedílho, lhe disse
eu, quando ficámos sós, o que não é honesto fazer-se entre católicos não será
bem fazer-se entre cismáticos e demais gregos, tão preconceituosos. Mea culpa, irmão Pantaleão!
Decorria o banquete com muita alegria, risos, conversa animada e boa disposição
de todos, quando de terra veio um batel que trazia uns como que meirinhos ou
justiças-mores do lugar. Logo procuraram o patrão e durante algum tempo falaram
com ele à puridade, Um moço veio ter comigo: Que o patrão me mandava chamar.
Levantei-me imediatamente e segui o moço. No seu camarote o patrão, sentado a
uma mesa, tinha a cabeça entre as mãos e chorava. Os dois oficiais de justiça
estavam de pé junto dele. Depois de um pequeno cumprimento de cabeça, um deles
perguntou-me: Sois frei Pantaleão? Acenei que sim. Podeis mostrar-me o vosso
breviário? Posso mostrar-vos, respondi, tirando do bolso o breviário em que
inadvertidamente pegara - aquele que comigo trago e que, por engano, troquei
com o de algum companheiro.
Como é o vosso? Tem uma
encadernação invulgar de carneira castanha, cantos de prata, letras gravadas a
ouro. Que sabeis dele? É livro que tenho em muita estima e bem me pesaria
perdê-lo. Este?, e mostrava-mo. Meu Deus!, exclamei eu, pegando nele e
tumultuando-me na cabeça não sei que pensamentos sestros e suspeitas. Onde o
encontrastes? Que um livreiro da cidade de Cândia, ao norte, o mesmo nome da
ilha, sabia? Outros lhe chamavam Iráclion, do antigo nome de Herácleon..., viera
procurar a justiça, desconfiado de um pescador que tinha aparecido na sua loja
a vender uns breviários e outros livrinhos de religiosos latinos». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Alfaguara, 2012, ISBN
978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, História,